Transferência de política pública e o papel do embaixador de políticas: dos Parques-Biblioteca de Medellín para os Centros Comunitários da Paz no Recife*
Universidade Federal da Paraíba (Brasil)
Universidade Federal da Paraíba (Brasil)
Universidade Federal da Paraíba (Brasil)
RECIBIDO: 30 de junio de 2024
ACEPTADO: 2 de octubre de 2024
MODIFICADO: 26 de octubre de 2024
https://doi.org/10.7440/colombiaint121.2025.03
RESUMO. Objetivo/contexto: neste artigo, é analisado como a política pública (PP) ultrapassa fronteiras nacionais e se difunde para outro espaço político, com foco no papel dos atores paradiplomáticos da Região Nordeste do Brasil. Especificamente, é examinada a transferência da experiência dos Parques-Biblioteca de Medellín, Colômbia, para a criação dos Centros Comunitários da Paz no Recife, Brasil. O objetivo principal foi analisar o processo de transferência e o papel desempenhado pelo embaixador de política pública. Metodologia: a metodologia utilizada inclui revisão de literatura, entrevistas semiestruturadas, visitas de campo e análise documental. Conclusões: identifica-se que a tradução da política foi a emulação, ou seja, a PP do Recife guarda similaridade com a de Medellín, com adaptações e ajustes à sua realidade. Os mecanismos pelos quais o processo se deu foram principalmente três: networking, circulação de indivíduos e construção social. A pesquisa apontou que o embaixador de PP, representado pelo ex-secretário de Segurança Cidadã do Recife, desempenhou papel crucial na internacionalização, adaptação e implementação dessa política. Originalidade: o artigo contribui para o debate sobre a difusão de políticas públicas, especialmente no contexto de regiões subnacionais periféricas, e destaca a importância da atuação dos embaixadores de PPs na mediação e adaptação de experiências internacionais para contextos locais.
PALAVRAS-CHAVE: centros comunitários da paz; embaixador de políticas públicas; governos subnacionais; parques-biblioteca; Recife; transferência de políticas públicas.
Public Policy Transfer and the Role of the Policy Ambassador: From Medellín’s Library Parks to Recife’s Peace Community Centers
ABSTRACT. Objective/context: This article analyzes how public policy (PP) crosses national borders and diffuses into another political space, focusing on the role of paradiplomatic actors in the Northeast Region of Brazil. Specifically, it examines the transfer of the experience of Medellín’s Library Parks in Colombia to the creation of the Peace Community Centers in Recife, Brazil. The main objective was to analyze the transfer process and the role played by the public policy ambassador. Methodology: The methodology used includes literature review, semi-structured interviews, field visits, and document analysis. Conclusions: It is identified that the translation of the policy was emulation; that is, Recife’s PP bears similarity to Medellín’s, with adaptations and adjustments to its reality. The mechanisms through which the process occurred were mainly three: networking, circulation of individuals, and social construction. The research pointed out that the PP ambassador, represented by the former Secretary of Citizen Security of Recife, played a crucial role in the internationalization, adaptation, and implementation of this policy. Originality: The article contributes to the debate on the diffusion of public policies, especially in the context of peripheral subnational regions, and highlights the importance of the role of PP ambassadors in mediating and adapting international experiences to local contexts.
KEYWORDS: library parks; peace community centers; public policy ambassador; public policy transfer; Recife; subnational governments.
Transferencia de política pública y el papel del embajador de políticas: de los Parques Biblioteca de Medellín a los Centros Comunitarios de Paz en Recife
RESUMEN. Objetivo/Contexto: en este artículo se analiza cómo la política pública (PP) cruza fronteras nacionales y se difunde en otro espacio político, enfocándose en el papel de los actores paradiplomáticos de la Región Nordeste de Brasil. Específicamente, se examina la transferencia de la experiencia de los Parques-Biblioteca de Medellín, Colombia, para la creación de los Centros Comunitarios de Paz en Recife, Brasil. El objetivo principal fue analizar el proceso de transferencia y el papel desempeñado por el embajador de políticas públicas. Metodología: la metodología utilizada incluye revisión de literatura, entrevistas semiestructuradas, visitas de campo y análisis documental. Conclusiones: se identifica que la traducción de la política fue una emulación; es decir, la PP de Recife guarda similitudes con la de Medellín, con adaptaciones y ajustes a su realidad. Los mecanismos por los cuales se dio el proceso fueron principalmente tres: establecimiento de redes, circulación de individuos y construcción social. La investigación señaló que el embajador de PP, representado por el exsecretario de Seguridad Ciudadana de Recife, desempeñó un papel crucial en la internacionalización, adaptación e implementación de esta política. Originalidad: el artículo contribuye al debate sobre la difusión de políticas públicas, especialmente en el contexto de regiones subnacionales periféricas, y destaca la importancia del papel de los embajadores de PP en la mediación y adaptación de experiencias internacionales a contextos locales.
PALABRAS CLAVE: centros comunitarios de paz; embajador de políticas públicas; gobiernos subnacionales; parques-biblioteca; Recife; transferencia de políticas públicas.
Introdução
Entender como uma política ultrapassa as fronteiras nacionais e se difunde para outros países pode ser um importante instrumento analítico para compreender os processos contemporâneos da produção das políticas públicas (PPs) e a forma pelas quais atores, instituições, regimes e governança internacional interferem nas políticas domésticas. Apesar de não se tratar de um fenômeno novo, a internacionalização das PPs ganhou intensidade com o aprofundamento da interdependência entre as nações, o que foi estimulado pela globalização e pelo crescimento da cooperação internacional. Essa movimentação internacional das PPs desafia o nacionalismo metodológico que predominou no campo, em razão do foco estadocêntrico e concentrado na interação entre atores e instituições domésticas (Faria 2018; Stone 2008). Além disso, é fato que a crescente internacionalização das políticas públicas exige revisão dos meios pelos quais elas são elaboradas, o que se ganha e quem se beneficia com esse processo (Faria 2018, 11).
Para Stone (2008), as instituições públicas e as organizações nacionais não podem mais ser vistas como o único centro organizador de políticas públicas. Isso porque, como apontou Richard Rose (1991), diferentes países enfrentam problemas públicos semelhantes, competem, compartilham e aprendem lições a partir da observação entre si e de outros países, mediados ou não por organizações internacionais. As inspirações nas decisões tomadas em diferentes países, bem como a adaptações de medidas, arranjos, projetos e estruturas de políticas públicas externas, para melhor aplicar nos contextos domésticos, são, cada vez mais, intensas e, por vezes, induzidas de forma coercitiva. De modo que fatores externos alteram e influenciam escolhas internas (Shipan e Volden 2012), ao mesmo tempo que inovações locais podem ser inspiração ou levar ao redesenho de PPs globais pelos agentes de difusão (Coêlho 2016). Essa dinâmica permite ampliar o campo de observação e aponta para a diversidade de estratégias e o protagonismo dos governos nacionais, subnacionais, organizações internacionais e atores diversos que promovem a mediação e difusão das políticas no âmbito local, nacional, transnacional e global.
Os debates teóricos e as análises empíricas sobre os processos de internacionalização de PPs têm trazido importantes contribuições para a consolidação do campo de estudos conhecido genericamente como “policy diffusion” — difusão de políticas públicas (Constantine e Shankland 2017; Dolowitz e Marsh 2000; Gilardi 2016; Menezes e Vieira 2022; Towns 2012). Com a presente pesquisa, busca-se aprofundar a compreensão teórica sobre as estratégias de difusão e sobre os atores envolvidos, a partir da análise do processo de transferência dos Parques-Biblioteca de Medellín (Colômbia) para a cidade do Recife (Brasil). O estudo foca, portanto, na análise de atores subnacionais (cidades) como protagonistas na transferência de PPs a partir do estudo de caso do Centro Comunitário da Paz (Compaz) da cidade do Recife, na Região Nordeste do Brasil (uma das regiões menos desenvolvidas do país). Ao ajustar o foco para o nível subnacional de governo, em particular para atores localizados em regiões periféricas, objetiva-se compreender a capacidade de atores diversos no campo da difusão de PP (Fróio et al. 2023; Porto de Oliveira e Faria 2017; Superti et al. 2022).
A questão norteadora da pesquisa foi a seguinte: Como se deu o processo de transferência e organização do Compaz no Recife a partir da experiência colombiana dos Parques-Biblioteca de Medellín? No processo de investigação, identificou-se que houve um relevante ator responsável pela implementação da política, o denominado “embaixador de política pública”, o que permitiu refletir sobre uma questão secundária relevante para o campo teórico de difusão de políticas: Qual o papel do embaixador de PPs no processo de transferência internacional?
A metodologia da pesquisa consistiu em consulta e revisão da literatura especializada, análise documental, entrevistas semiestruturadas, assim como visita de campo ao Compaz-Governador Eduardo Campos. O artigo foi estruturado em quatro seções, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira parte, discutimos a base teórica que alicerça a investigação sobre a atuação internacional de governos subnacionais e as ferramentas teórico-conceituais da internacionalização de políticas públicas. Na segunda seção, detalhamos a metodologia e, em seguida, apresentamos a política colombiana que inspirou a criação da Rede Compaz. Por fim, abordamos o estudo de caso e o processo de transferência da PP para o Recife, bem como o papel do embaixador de política.
As mudanças provocadas pela globalização levaram ao crescimento da interdependência econômica, política e social, o que implicou novas formas de atuação dos Estados, para lidar com problemas que costumavam ser de âmbito exclusivamente doméstico, e proporcionou a ampliação de espaços para a inserção internacional de outros atores (organizações não governamentais, atores privados, governos subnacionais). De forma geral, a configuração do sistema internacional tanto favorece a projeção de governos e demais atores (canal de conexão) quanto consiste em um espaço para angariar recursos, trocar experiências, firmar parcerias e aprimorar políticas públicas (ferramenta política).
Em grande medida, esses atores também passaram a interferir no processo de formulação das PPs nacionais (Faria 2018), resultando em uma “dinâmica chave da internacionalização das políticas públicas” (Nainggolan 2017, 7). Com relação aos governos subnacionais, especificamente, há uma série de ações internacionais engendradas para a consecução dos seus interesses específicos, o que inclui buscar o desenvolvimento e o aprimoramento de políticas públicas locais. Nesse processo, são verificadas diversas vulnerabilidades, como fragilidades no ambiente político local e deficiências na capacidade técnica da burocracia do governo subnacional, que podem impactar de forma significativa a maneira que a implementação ou internacionalização de políticas ocorre. A condição de vulnerabilidade de determinados territórios pode interferir na forma de disseminação de normas ou políticas e nas interações entre os atores, já que é preciso ter capacidade (técnica, financeira, humana) para dar suporte às políticas disseminadas ou implementadas (Fróio, Superti e Souza 2024).
A expressão “internacionalização de PP” aqui empregue pode ser considerada de forma mais abrangente, para tratar das viagens das políticas, também definida como um “fenômeno que consiste no deslocamento, no tempo e no espaço, de objetos da natureza das políticas públicas (ideias, conhecimentos, modelos de gestão, arranjos administrativos, programas políticos, instituições públicas, boas práticas, tecnologias sociais, etc.)” (Porto de Oliveira, Saraiva e Sakai 2020, 19).
De forma sucinta, os estudos sobre o deslocamento das políticas apresentam três principais abordagens: transferência, difusão e circulação de políticas públicas. Porto de Oliveira, Saraiva e Sakai (2020) fazem a distinção entre essas três com base na direção do movimento de internacionalização. O processo de transferência significa um deslocamento pontual e linear de uma PP de um lugar para outro. A PP sai de seu local de origem, que pode ser um governo, organização internacional, organização não governamental, e é transferida diretamente para outra jurisdição política. Nos estudos de Dolowitz e Marsh (1996), o termo “transferência” se refere ao processo por meio do qual o conhecimento sobre uma PP (ou sobre os objetos de natureza das PPs) é utilizado para elaboração de PP em outro ambiente político. A transferência tem, assim, um foco mais micro e, para Coêlho (2016), ela ocorre principalmente por meio dos atores envolvidos no processo.
Já a difusão consiste no deslocamento da política para outros diferentes pontos ao mesmo tempo ou não, envolvendo inúmeras transferências. Assim, o uso do termo “difusão” de PP refere-se a um conjunto de adoções simultâneas ou não de uma política por grupo de países. Segundo Coêlho (2016), a difusão flui por meio de estruturas e em rede, já que envolve grande número de adotantes. Assim, “os processos de difusão de políticas podem assumir a forma de ‘ondas’ que envolvem flutuações de adoção de políticas e refluxo de abandono” (Porto de Oliveira e Faria 2017, 19).
Dentre as três abordagens, a circulação é a mais complexa e definida como um movimento de “idas e vindas das políticas públicas e processos de aprendizado mútuo” (Porto de Oliveira, Saraiva e Sakai 2020, 20). No movimento de circulação, a política sai de um ponto, passa por outros pontos e volta ao seu lugar de origem; essa dinâmica pode levar à transformação do modelo original e produzir diferentes resultados. Para Delpeuch (2009), a circulação enfatiza a dimensão transnacional, que envolve a ação de múltiplos atores e instituições que adaptam e modificam informações, instrumentos e estratégias políticas ao longo dos processos de deslocamento da PP e se retroalimentam por meio de novas emissões e inovações que seguem reformulando as PPs para outras partes do mundo. Neste estudo, a abordagem utilizada será a da transferência de PP, apesar de identificarmos que a política dos Parques-Biblioteca de Medellín foi difundida para outro país1 e outras cidades no Brasil2. Contudo, segundo documentos da prefeitura do Recife, a relação com o governo da cidade de Medellín foi direta e, ainda de acordo com eles, foi dessa interação entre as duas prefeituras que surge o Compaz-Governador Eduardo Campos, primeira unidade instalada no Recife, em 2016 (“Compaz do Alto Santa Terezinha de portas abertas para a população” 2016). Assim, considerando o nosso objetivo de discutir a internacionalização da PP da cidade de Medellín para a cidade do Recife, ou seja, do ponto A para o ponto B, compreendendo os atores e a maneira pela qual o conhecimento foi utilizado para a elaboração da política do Compaz, entendemos que a abordagem da transferência é a mais adequada.
A literatura especializada de transferência (Dolowitz e Marsh 2000; Dumoulin e Saurugger 2010; Pojani 2020) aponta que dificilmente as políticas vão ser adotadas no local de destino da mesma forma que estão colocadas no seu local de origem. Elas serão adaptadas ou traduzidas para as condições políticas, culturais e institucionais locais, orientadas pelo processo de aprendizagem dos atores. Por isso, Rose (1991), ao apontar os principais tipos de adaptação, chama-os “variedades de aprendizagem”.
Existe extensa gama de tipologias nem sempre consensuais, mas vamos resumir os cinco tipos mais aceitos, são eles: i) cópia, acontece quando uma política é adotada em outro local sem que ocorram alterações significativas, ou seja, as adaptações são mínimas; ii) emulação, consiste na adoção com adaptações ao contexto local de uma política já existente; iii) hibridização, combina elementos de políticas de dois lugares diferentes; iv) síntese, diz respeito à junção de elementos implementados em três ou mais lugares diferentes que resultam em uma política diferente das demais; e v) inspiração, que ocorre quando os instrumentos de uma PP já existente são utilizados para inspirar a elaboração de uma nova política (Faria 2018). Neste estudo, a emulação foi o que melhor nos permitiu explicar o processo de transferência.
Para além do tipo de aprendizagem ou adaptação, é preciso ainda compreender os meios pelos quais os processos de aprendizagem acontecem, ou seja, de que forma os atores tomam ciência das políticas, aprendem sobre ela e buscam internacionalizá-las — estes são os mecanismos. Não há consenso na literatura sobre os tipos de mecanismos e Porto de Oliveira (2021) aponta que as definições carecem de clareza conceitual quando se trata de distingui-las entre si. De fato, quando nos debruçamos sobre a literatura, é possível observar a confusão terminológica.
Graham, Shipan e Volden (2013), por exemplo, apresentam mais de 100 termos sobre os mecanismos de internacionalização de políticas que os autores reduzem a quatro principais — aprendizado, competição, coerção e socialização —, mas o foco da análise dos autores se concentra na atuação de governos nacionais e organizações internacionais intergovernamentais. Considerando a especificidade deste estudo, focado na relação de dois entes subnacionais (prefeitura do Recife e alcaldía de Medellín), optamos por trabalhar com as definições de Porto de Oliveira, Saraiva e Sakai (2020) por entender que eles nos dariam lentes conceituais mais ajustadas ao objeto de estudo, uma vez que consideram em suas definições a atuação dos entes subnacionais. Os autores elencam outros cinco principais mecanismos: a indução institucional, a cooperação, a tradução, a renovação política, o networking e a circulação dos indivíduos. Destes vamos detalhar os dois últimos, que melhor apoiam nossa análise, e incluir um, o de construção social, trabalhado por Porto de Oliveira (2016).
Os mecanismos de networking e circulação de indivíduos dizem respeito às relações interpessoais entre os atores que se movimentam e participam de eventos, capacitações, visitas e intercâmbios com países, regiões e organizações, e estabelecem redes de contato e troca de informações. Por meio dessas conexões e interações, os atores envolvidos na formulação, implementação e avaliação de políticas compartilham informações, experiências e práticas no enfrentamento de problemas públicos, o que permite que ideias, ações e inovações se espalhem além das fronteiras geográficas e institucionais. O mecanismo da construção social possui duas ideias principais: o prestígio que uma prática acumula e passa a ser apresentada como “boa prática” por organizações ou atores de grande reputação, chamando a atenção de atores e redes e influenciando a sua adoção; e o pertencimento e a proximidade cultural, que também podem incentivar a adoção da política uma vez que crenças, valores e significados são compartilhados, o que facilita a percepção e aceitação da política.
Os três mecanismos mostram a importância dos atores no processo de transferência. Parte dessa agência será abordada por meio do conceito do embaixador de PPs. A expressão “embaixador de políticas” (ambassador policy) foi introduzida por Porto de Oliveira (2013; 2020) como uma nova categoria para descrever a ação dos indivíduos no processo de transnacionalização das PPs. O autor tomou por base conceitos anteriores, principalmente o de empreendedor político de Kingdon (2014), as comunidades epistêmicas de Haas (1992) e o broker de Tarrow e McAdam (2005). Embora nos limites deste artigo não seja possível esmiuçar cada uma dessas concepções e suas contribuições, é relevante indicar as diferenças e especificidades.
Os empreendedores políticos, conforme delineados por Kingdon (2014), são indivíduos que se concentram em conectar problemas a soluções e promover mudanças na agenda política. Eles operam mais frequentemente em contextos nacionais, aproveitando janelas de oportunidade para avançar suas ideias. Em contraste, os embaixadores de políticas são descritos por Porto de Oliveira (2020) como atores persistentes e dedicados que promovem políticas ao longo do tempo, independentemente das oportunidades momentâneas ou das janelas de oportunidades. Eles operam em níveis locais, nacionais e transnacionais, e sua atuação transcende o escopo temporário das janelas de oportunidade.
A concepção de comunidades epistêmicas de Haas (1992) também está na base do conceito, e Porto de Oliveira (2020) explica como as redes de profissionais, com conhecimento em um campo específico e que compartilham crenças e valores, influenciam a PP por meio do compartilhamento de conhecimento e orientação das ações. Contudo, os embaixadores de políticas se destacam por sua ação individual, persistente e direcionada na promoção de políticas específicas em diferentes contextos e níveis de governança. Eles não apenas compartilham conhecimento com suas redes e direcionam a agência a outros atores, mas são eles próprios agentes de defesa e implementação de políticas específicas ao longo do tempo.
Tarrow e McAdam (2005) formularam a figura dos brokers que desempenham papel crucial na mediação entre diferentes atores e na transmissão de informações em contextos políticos e sociais. Os embaixadores de políticas também atuam como pontes entre diferentes instituições e níveis de governança, mas sua ênfase está na promoção persistente e dedicada de políticas específicas ao longo do tempo, e não apenas na mediação ou facilitação de processos.
Em síntese, os embaixadores de políticas são agentes dedicados que consistentemente promovem políticas específicas em diversos contextos. Eles não são oportunistas, mas defensores persistentes de suas políticas ao longo do tempo, independentemente das circunstâncias. Geralmente fluentes em diferentes idiomas e com experiência em várias partes do mundo, esses embaixadores são capazes de operar efetivamente em níveis transnacionais. Além disso, combinam elementos de mediação, empreendedorismo e expertise para atingir seus objetivos. Circulam entre diversas instituições, promovendo suas agendas políticas específicas, e possuem autoridade baseada em diferentes fontes, como política, técnica, epistêmica e carismática. Sua influência se estende por meio da criação de redes de contatos e da defesa persistente de suas políticas em várias arenas políticas (Porto de Oliveira 2013; Porto de Oliveira 2020).
A metodologia empregada foi de caráter qualitativo e baseou-se nos princípios orientadores da pesquisa-ação. Essa abordagem prevê o envolvimento entre pesquisadores e pesquisados de forma mediada e por meio de interação não hierárquica.
As técnicas de pesquisa utilizadas foram revisão de literatura, análise documental e entrevistas. A revisão não sistemática da literatura especializada dentro do campo da difusão de políticas públicas foi utilizada com a intenção de compreender a transferência da PP de Medellín para o Recife e constituir um arcabouço teórico consistente para subsidiar a análise do caso. O levantamento da literatura ocorreu por meio do Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes, conteúdo assinado), da base de dados da Scopus e SciELO e da consulta à inteligência artificial Scispace. Os principais termos buscados em combinação — tanto em inglês, português e espanhol, com operadores booleanos and ou or — foram os seguintes: política pública, transferência, difusão, internacionalização, Medellín, Recife, Brasil, Colômbia, Parques-Biblioteca, Projeto Urbanos Integrados, PUI [Projeto Urbano Integrado], Centros Comunitários da Paz, Compaz. Essa revisão resultou em 38 achados sobre os Parques-Biblioteca de Medellín, 17 sobre o Compaz no Recife, 1 artigo sobre as experiências similares de São Paulo e Medellín, e nenhum resultado sobre o objeto desta pesquisa.
A busca por informações, dados e documentos foi realizada inicialmente nos sites da prefeitura do Recife, da alcaldía de Medellín — que conduziu a outros sites, assim como às matérias jornalísticas. As principais informações sobre o processo de transferência da PP foram conseguidas em dois livros publicados pelo ex-secretário de Segurança Cidadã do Recife, que foi responsável pela concepção da Rede Compaz. Os livros são Conexão Recife Medellin Compaz (Cavalcanti 2022) e As lições de Bogotá e Medellín: do caos à referência mundial (Cavalcanti 2013). Eles trazem em detalhes, primeiramente, a visão do principal agente responsável pela transferência da PP, logo as informações sobre a elaboração da política no lugar de origem e o histórico do deslocamento da experiência dos Parques-Biblioteca de Medellín para o Recife.
Além da literatura, para triangular as informações e fazer a validação dos dados, foram realizadas, entre setembro e novembro de 2023, entrevistas3 semiestruturadas e visita de campo ao primeiro Compaz-Governador Eduardo Campos, que é apontado pela prefeitura do Recife como resultado da relação direta com Medellín (“As lições de Medellin” 2021). Para este artigo, foram utilizadas as entrevistas de Murilo Cavalcanti, ex-secretário de Segurança Cidadã da Prefeitura do Recife, de Mayse Cavalcanti, gerente-geral do referido centro, e do chefe de projetos especiais do Compaz-Governador Eduardo Campos, Elisandro Damasceno. Os resultados das entrevistas e da análise dos documentos compõem as duas seções finais deste artigo.
Nos anos de 1990, Medellín era considerada a cidade mais violenta do mundo, chegando ao pico de 381 homicídios a cada 100 mil habitantes em 1991; comparativamente, a Colômbia apresentou a taxa de 77 homicídios por 100 mil habitantes no mesmo ano (Cardona et al. 2005). Os anos de violência marcados pelo narcotráfico, pela disputa entre gangues e pela ação armada de grupos paramilitares afetaram significativamente a dinâmica social e econômica da cidade, que também sofria com o forte crescimento desordenado. No começo dos anos 2000, 60 % da população vivia abaixo da linha da pobreza e a taxa de informalidade do trabalho estava em mais de 50 % (Piedad e Diana 2010).
O enfrentamento desse cenário, considerando toda sua complexidade, exigiu medidas que extrapolassem os mecanismos meramente punitivos e repressivos e que fossem capazes de produzir respostas abrangentes de prevenção social (Capillé 2017). Além de medidas voltadas para o desenvolvimento territorial e do plano de ordenamento territorial, as quais buscavam dar respostas ao crescimento desordenado da cidade, foi introduzido, em 2004, na Zona Nordeste da cidade, o Projeto Urbano Integrado (PUI) — uma ação governamental que buscava empregar uma metodologia de intervenção urbana. O PUI visava promover a inclusão urbana por meio de estratégias territoriais, estéticas e simbólicas que poderiam transformar os espaços físicos, proporcionando ambientes dignos, democráticos e inclusivos (Costa 2019). A partir da lógica do urbanismo social, o enfrentamento da criminalidade na cidade precisaria ser considerado, tendo em vista aspectos como iluminação pública, acesso a instalações de lazer, equipamentos públicos de qualidade, melhorias na mobilidade urbana, serviços de educação e saúde, entre outros elementos (Santos, Echeverria e Dantas 2022, 53).
Formulados no plano de desenvolvimento “Compromisso de toda a cidadania”, da gestão do ex-prefeito Sergio Fajardo (2004-2007), o projeto tem continuidade também no mandato seguinte do ex-prefeito Alonso Salazar (2008-2011) (Santos e Davel 2018). O PUI foi coordenado e gerido pela Empresa de Desarrollo Urbano, empresa pública com autonomia financeira e administrativa da alcaldía de Medellín (Jesus 2016). O objetivo do projeto era promover a melhoria do espaço urbano e aumentar os índices de qualidade de vida dos cidadãos em diversas áreas — segurança, saúde, educação e mobilidade — e reduzir as desigualdades socioespaciais, a partir do incremento da infraestrutura e da criação de programas sociais voltados para as áreas mais vulneráveis da cidade (Sánchez 2017).
Três dimensões principais compunham o arcabouço do projeto: a física, a social e a institucional (Alcadía Medellín 2011; Jesus 2016). A dimensão física dizia respeito às intervenções urbanas que ocorreram nas áreas mais conflituosas e de maior vulnerabilidade, incluindo as ações de construções e melhoria dos espaços públicos, o ordenamento da mobilidade urbana, a construção de equipamentos públicos de qualidade, além da construção de habitações. A dimensão social foi baseada na estratégia de fortalecimento comunitário, a fim de recuperar e fortalecer o tecido social, com grande ênfase no planejamento participativo de toda a comunidade, o que criava corresponsabilidade pelo projeto e legitimava as ações no território. O aspecto institucional foi baseado no conceito de integralidade, com o envolvimento da gestão coordenada de diversas secretarias e departamentos públicos nas ações e promoção de alianças com outros setores, como empresas privadas e organizações não governamentais (Alcaldía de Medellín 2011; Jesus 2016).
Os Parques-Biblioteca são, portanto, parte do PUI, especificamente uma PP no nível operacional do projeto, considerando a análise multinível de PPs4. As três dimensões do PUI estão congregadas nos Parques-Biblioteca e são uma manifestação tangível dos princípios e objetivos do projeto em Medellín. Organizados como complexos arquitetônicos de grande impacto estético e construídos em áreas marginalizadas, os parques disponibilizam para a população serviços bibliotecários, teatro, galeria de arte, cultura digital, encontros comunitários, acesso gratuito à internet, entre outras atividades (Santos, Echeverria e Dantas 2022). Trata-se de um complexo sociocultural projetado para ser também ponto de encontro e convivência da comunidade. No seu entorno, estão espaços e equipamentos públicos para o esporte e o lazer, apoio social e econômico.
O primeiro parque-biblioteca foi inaugurado em 2006. No ano seguinte, foram inaugurados outros três equipamentos, incluindo um dos maiores do conjunto: o Parque-Biblioteca España, em Santo Domingo Savio. O último foi inaugurado em 2008, compondo os 10 edifícios construídos, no estilo de Parques-Biblioteca, que funcionam “como pontos de transformação e fortalecimento das comunidades e culturas locais” (Sistema de Bibliotecas Públicas de Medellín 2024).
A implantação dos Parques-Biblioteca está fortemente ligada à intenção de modificar a imagem de Medellín, tanto que a escolha dos primeiros locais para a instalação dos equipamentos levou em conta as áreas com menores índices de desenvolvimento e graves situações de vulnerabilidade social (Hübner e Pimenta 2020). Segundo Gallego (2011), esses complexos ou equipamentos foram propulsores de uma mudança social e urbana para a cidade colombiana, o que contribuiu para a redução das taxas de criminalidade, da violência, do abandono escolar e para a melhora da qualidade de vida da população atendida5.
O envolvimento da comunidade na construção dos parques ocorreu desde o planejamento inicial até as campanhas de sensibilização, antes de sua entrega (Gallego 2011). Por meio da capacitação das lideranças, de oficinas de mapeamento de necessidade e de eventos diversos, toda a comunidade foi envolvida, sendo convidada a participar e a contribuir com sugestões. Além disso, a equipe técnica contratada para a execução e manutenção da obra deu prioridade à contratação de pessoas que residiam nos bairros beneficiados pelos Parques-Biblioteca. Para Cavalcanti (2022), esse envolvimento foi fundamental para que se produzisse o comprometimento e o reforço dos laços comunitários em torno do projeto; além disso, ainda segundo o autor, as intervenções foram pensadas de forma integrada e atingiam problemas públicos de forma multidimensional.
A transformação da cidade de Medellín começou a ocorrer por meio de uma série de intervenções interligadas do PUI, entre as quais os Parques-Biblioteca, que faziam parte como política âncora (Cavalcanti 2022). Mais de 200 mil habitantes, localizados em seis bairros da cidade, foram impactados. Conhecida como “capital do narcotráfico”, ao longo de 30 anos, Medellín tornou-se exemplo global de boas práticas em urbanismo social e no combate à violência e à desigualdade social. Em 2013, recebeu o título de “Cidade mais inovadora do mundo”, concedido pelo The Wall Street Journal e pelo Urban Land Institute (“Medellín é eleita a cidade mais inovadora do mundo” 2013). Em 2016, ganhou o prêmio mundial de Lee Kuan Yew World City, considerado o Nobel do urbanismo, celebrando o reconhecimento da rápida transformação do município no caminho da sustentabilidade (ICLEI Governos Locais pela Sustentabilidade 2016).
A viagem do modelo dos Parques-Biblioteca de Medellín para o Recife não foi realizada por meio de um acordo6, que estabelecesse uma relação formal e institucionalizada de compartilhamento entre os dois governos subnacionais. O processo de transferência ficou ao encargo e responsabilidade dos agentes — políticos, funcionários públicos, gestores da prefeitura do Recife e da Colômbia. Deduz-se que o processo se deu de forma descoordenada e interconectada, o que ocorre, segundo Elkins e Simmons (2005), quando os governos envolvidos tomam suas decisões livremente, sem que os condicionantes de um ato formal de cooperação os induzam ou coajam a determinadas escolhas, mas, ao mesmo tempo, são influenciados e levam em consideração as decisões, experiências e práticas de outros governos. Para Coêlho (2016), quanto maior a interação, formal ou informal, entre atores governamentais, maiores são as possibilidades de as políticas se deslocarem.
Além disso, a formulação de PPs e o processo de internacionalização estão inseridos numa complexa trama de relações estabelecidas entre diferentes atores. Mas, segundo Porto de Oliveira (2020), as dinâmicas na escala micro do processo de viagem das políticas (o que inclui o papel desempenhado pelos indivíduos) podem contribuir para melhor compreensão do fenômeno. É sob essa perspectiva que discutiremos o papel do ex-secretário de Segurança Cidadã de Recife, que, ao longo da pesquisa, foi identificado como um embaixador de PP dentro do caso em análise.
De acordo com as entrevistas e com os documentos analisados, a agência do ex-secretário de Segurança Cidadã do Recife Murilo Cavalcanti foi decisiva no processo. Ele se aproximou da temática sobre a prevenção social ao crime por questões pessoais, depois de uma tragédia familiar, e teve atuação importante em campanhas de combate ao crime e nas discussões sobre políticas de desarmamento, ganhando destaque local e nacional como ativista (Cavalcanti 2022). Uma característica do embaixador de política, conforme posto nas discussões de Porto de Oliveira (2020), é que o campo de atuação desse agente muitas vezes está alinhado à sua expertise profissional. Essa atividade é apresentada como uma missão de vida, refletindo também na sua imagem pública (Porto de Oliveira 2020). Nesse sentido, as ações de Murilo em prol da construção de uma sociedade mais igualitária e menos violenta, por meio de uma cultura de paz, entregando o “melhor para os mais pobres”, não são, aparentemente, um mero discurso político, mas também ressoam como uma missão na qual ele está engajado.
Em 2006, Murilo viajou para a Colômbia a fim de conhecer a experiência das cidades de Bogotá e de Medellín (Cavalcanti 2023). Desde a primeira viagem, estabeleceu uma rede de contatos pessoais e interlocuções com funcionários públicos, entre eles o subsecretário de Segurança Cidadã de Bogotá e o secretário de Cultura Cidadã de Medellín (Cavalcanti 2022), ambos protagonistas na implementação do PUI e dos parques. De acordo com sua entrevista, eles o ajudaram a idealizar a possibilidade de estabelecer uma política inspirada nos Parques-Biblioteca no Recife (Cavalcanti 2023).
A partir do networking construído, o ex-secretário procurou reunir políticos, gestores e burocratas da prefeitura do Recife e chamar a atenção em prol das soluções e possibilidades baseadas na experiência de Medellín (Cavalcanti 2023; Damasceno 2023). Essa é uma característica típica dos embaixadores de política, para Porto de Oliveira (2020), uma vez que a cidade colombiana tinha ganhado notoriedade no cenário internacional, devido às amplas transformações urbanas, físicas e sociais da cidade, o que despertou o interesse mundial.
Diante do prestígio e da reputação alcançados pelas PPs colombianas, a estratégia-chave do ex-secretário do Recife, ao mobilizar recursos e expertise política, foi fazer com que os policy makers conhecessem as experiências de Medellín por meio de visitas e participações em fóruns e eventos em que a experiência de Medellín era apresentada. Essa abordagem foi fundamental para chamar a atenção dos decisores e colocar o tema na agenda política da prefeitura do Recife. Em 2008, houve grande oportunidade quando o então deputado federal Raul Henry, candidato a prefeito do Recife pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), convidou Murilo Cavalcanti para conceber uma proposta para a redução da criminalidade no Recife e apresentá-la em seu plano de governo. Foi nessa oportunidade que, inspirado no modelo dos Parques-Biblioteca de Medellín, surgiu a ideia do Compaz (Cavalcanti 2022).
O candidato Raul Henry não venceu as eleições naquele ano, mas o projeto ganhou visibilidade. A literatura sobre a formação da agenda em PPs indica que a defesa de um tema por um político confere legitimidade à questão, colocando-a em destaque perante outros atores que possuem relevância na formação da agenda governamental (Secchi 2010). Em janeiro de 2013, Murilo Cavalcanti assumiu o cargo de secretário de Segurança Urbana do Recife — atualmente Secretaria de Segurança Cidadã (Sesec) —, iniciando o seu esforço, junto com outros atores, na mobilização de recursos para viabilizar a construção dos Compaz na cidade.
De acordo com os relatos dos outros dois entrevistados, a importação da política de Medellín para o Recife se valeu do networking construído por Murilo Cavalcanti e do sólido aprendizado dos servidores que se dedicaram a elaborar e implementar o Compaz. Entre as estratégias utilizadas estavam reuniões regulares, palestras e encontros com o alto escalão da burocracia municipal e autoridades políticas de Medellín e do Recife. Além de seminários, treinamentos, capacitações dos servidores da Secretaria de Segurança e de outros órgãos realizadas pelos funcionários da alcaldía de Medellín e da Empresa de Desarrollo Urbano. Visitas presenciais também foram organizadas por Murilo Cavalcanti. Tantos funcionários, gestores e políticos do Recife foram a Medellín quanto especialistas, políticos e burocratas colombianos vieram ao Recife. Para viabilizar as ações, a gestora do Compaz compartilhou durante a entrevista que foi elaborado o projeto “Conexão Recife-Medellín”, que contou com o apoio do Itaú Social (Cavalcanti 2023).
Murilo realizou diversas viagens para compartilhar sua experiência e promover o Compaz em outros estados e países, além de ser autor de vários livros e artigos na imprensa que falam sobre as transformações ocorridas em Medellín e sobre como os aprendizados na capital da Antioquia o inspiraram a formular os centros comunitários, isso o faz não apenas um divulgador da política, mas uma figura que confere legitimidade ao programa, dado seu conhecimento prático e experiência adquirida.
Dos aprendizados com Medellín, Murilo Cavalcanti (2023) destacou em entrevista os seguintes aspectos que orientaram a construção do Compaz: i) aproximação com a comunidade e construção coletiva. Essa lição foi importante porque, “quando a gente escuta a população que vai ser beneficiada com aquele equipamento, a chance de errar diminui muito”; ii) valorização do design. O equipamento vai além da estrutura física, mas ela é significativa porque representa o aspecto material de uma transformação social que visa ao fortalecimento da cidadania; e iii) integralidade das ações, que, na fala do ex-secretário, “é um conjunto de intervenções urbanas nas áreas mais periféricas da cidade que faz nascer uma geração de pessoas que não fazem justiça com as próprias mãos, que querem se afastar das drogas, da criminalidade e da delinquência”. Ele complementa dizendo que os “Centros Comunitários da Paz foram erguidos com base nos conceitos e no modelo de funcionamento aprendidos em Medellín, mas não se trata de uma simples cópia, e sim de se inspirar em boas práticas urbanas que transformaram vidas e deram resultados” (Cavalcanti 2023).
Os outros dois entrevistados, Mayse Cavalcanti e Elisandro Damasceno, reforçaram que o Recife utilizou a experiência de Medellín como modelo para desenvolver sua intervenção. A prefeitura do Recife, por meio de seus agentes públicos, emulou os aprendizados que teve com Medellín. Os Compaz consistiram em um projeto da Secretaria de Segurança Cidadã, que, em parceria com outras secretarias, visou dotar bairros marginalizados do Recife com infraestrutura de qualidade, no intuito de ofertar diversos serviços e atendimentos aos usuários cadastrados, como atividades educativas, culturais, esportivas, saúde e bem-estar, qualificação profissional, entre outras. O foco de atuação da PP no Recife esteve muito próximo da política colombiana.
A metodologia de implementação também apresentou fortes semelhanças com a metodologia de implementação dos Parques-Biblioteca de Medellín. No Recife, o projeto de construção e implementação do Compaz contou com processos de planejamento participativo com a comunidade e o território. Tomando por base o conceito de Medellín de “existir antes de existir”, a Sesec, antes de o equipamento começar a funcionar, buscou desenvolver na comunidade-alvo uma compreensão com bastante exatidão de como ele seria (Cavalcanti 2023; Damasceno 2023).
Além disso, tanto em Medellín quanto no Recife, a escolha do local dos edifícios foi realizada com vistas às comunidades que apresentavam maior vulnerabilidade social, menores índices de desenvolvimento humano e maiores índices de criminalidade. As duas políticas, em países distintos, tiveram como objetivo estabelecer a presença do Estado nesses territórios, ao proporcionar ambiente seguro de convivência social e aprendizado, desempenhando papel fundamental no oferecimento de atividades e serviços públicos em diversas áreas.
Essa lógica pode ser percebida no Compaz-Governador Eduardo Campos (Figura 1). Inaugurado em março de 2016, o equipamento está localizado na comunidade do Alto Santa Terezinha, Zona Norte do Recife, mas abrange também as localidades Bomba do Hemetério, Beberibe, Dois Unidos, Linha do Tiro e Água Fria, Alto José Bonifácio, Brejo de Beberibe, Fundão e Porto da Madeira (Prefeitura do Recife 2022). O equipamento foi implantado entre os 16 bairros com piores indicadores de violência do Recife. O bairro Alto Santa Terezinha tinha baixo índice de desenvolvimento humano, disputa de território pelo tráfico de drogas e, em 2015, o bairro teve o mais alto índice de homicídios da cidade — 57 homicídios a cada 100 mil habitantes (Vicente, Spíndola e Esperandio 2022).
Figura 1. Compaz-Governador Eduardo Campos (vista aérea)
Fonte: Cavalcanti (2022).
Porto de Oliveira (2020) considera que os embaixadores de política não estão envolvidos apenas como intermediários no processo de internacionalização de políticas, mas também estão engajados na tradução dessas políticas para se adequarem às realidades culturais e institucionais dos locais para onde determinada política está sendo transferida. Nesse sentido, é possível apontar a agência de Murilo Cavalcanti na adaptação do modelo colombiano à realidade do Recife. Como ressaltado pela gerente-geral e pelo chefe de projetos especiais entrevistados durante a visita de campo, uma diferença importante entre o Compaz do Recife e os Parques-Biblioteca de Medellín é que nos centros do Recife os serviços prestados à população se expandiram e foram integrados em um único equipamento, estabelecido via parcerias com outras secretarias e entidades.
Atualmente, 11 secretarias estão envolvidas no Compaz-Governador Eduardo Campos, de forma integrada, mas existe rotatividade conforme a demanda da população em relação aos atendimentos, aos serviços requeridos e à disponibilidade das salas (Damasceno 2023). O equipamento oferece gama variada de serviços, com destaque para o Centro de Referência de Assistência Social; para a mediação de conflitos; para o atendimento para Mulheres — Espaço Descentralizado Clarice Lispector; para a Sala do Empreendedor e Agência de Emprego; para a junta militar; para a biblioteca; para o Programa de Proteção e Defesa do Consumidor -Procon-Recife; para as aulas de esporte, artes marciais, balé, música; i) para os cursos profissionalizantes e de línguas estrangeiras. A unidade também conta com parceria com empresas e instituições como a Fundação Bernard Van Leer, o Sesc, o Senac, o Sebrae7, a Fundação Joaquim Nabuco, o Instituto Fecomércio-PE, entre outras (Coelho 2017).
Os dois atuais gestores do Compaz (Cavalcanti 2023; Damasceno 2023), entrevistados nesta pesquisa também apontaram as principais dificuldades. Segundo eles, há falta de orçamento para executar as atividades e projetos, problemas ligados à infraestrutura dos prédios para atender a diversidade de ações demandadas pela comunidade e quantidade limitada de vagas diante da grande procura dos moradores. Esses problemas limitam o alcance do equipamento e sua capacidade de inclusão social.
Outra diferença importante entre Medellín e Recife é que os Parques-Biblioteca da cidade colombiana são parte de uma política macroestruturante, já que estão inseridos no PUI, que possui outras intervenções urbanas e sociais de maneira coordenada. Enquanto no Recife, o Compaz é um projeto de uma secretaria do governo municipal, que, embora faça parte do plano municipal de segurança e prevenção da violência — “Pacto pela vida do Recife”8, vinculado diretamente ao programa estadual, “Pacto pela vida Pernambuco” (Cavalcanti 2022) —, ele não dialoga de forma direta, coordenada e integral com outras intervenções urbanas e não está ancorado em uma lei que institucionalize a PP e a torne contínua ao longo do tempo.
Mesmo não sendo objeto deste artigo, vale ressaltar que, segundo Santos, Echeverria e Dantas (2022), houve diminuição no número de homicídios nos bairros que estão no raio de 1 km da unidade Compaz-Governador Eduardo Campos, no período de um ano após a inauguração. A taxa, que era de 40,4 homicídios por 100 mil habitantes em 2016, chegou a 31,8 por 100 mil habitantes em 2017. Nesse mesmo período, a Grande Recife sofreu aumento de 20,1 % (Santos, Echeverria e Dantas 2022). De acordo com a prefeitura do Recife (“Compaz recebe prêmio” 2019), em 2019, a Rede Compaz ganhou o prêmio da Oxfam Brasil/Cidades Sustentáveis, como exemplo de equipamento que mais reduziu a desigualdade social no Brasil. No mesmo ano, a convite do Núcleo Ciência pela Infância, o então secretário da Sesec Murilo Cavalcante participou do Programa de Liderança Executiva em Desenvolvimento da Primeira Infância, na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, para apresentar os Compaz. O Compaz também foi escolhido para o Prêmio de Serviço Público das Nações Unidas, em fevereiro de 2024, como iniciativa que melhor contempla os objetivos de desenvolvimento sustentável e apresenta excelência no serviço público (“Compaz é reconhecido pela ONU em premiação em Nova Iorque” 2024).
Alcançar resultados positivos, em curto espaço de tempo, valendo-se de experiências testadas em outros lugares, com contextos semelhantes, é grande atrativo para os governos. Emular uma política reconhecida internacionalmente ajuda no convencimento de políticos e outros stakeholders sobre a validade e viabilidade da política, influenciando a escolha do policy decision e facilitando a aceitação entre atores locais. Nesse contexto, conforme observado por Rose (1991), os decisores políticos tendem a preferir a segurança de implementar soluções e práticas que já se mostraram eficazes em outros lugares.
O aspecto da semelhança do perfil das duas cidades também foi apontado nas entrevistas com elemento relevante para que o projeto fosse aceito. O ex-secretário Murilo Cavalcanti ressaltou que “os gestores têm que ir buscar aprender outros tipos de iniciativas que estão dando certo em algum lugar do mundo, notadamente na América Latina, porque tem uma geografia física, humana e social muito parecidas” (Cavalcanti 2023). É perceptível, pela forma como se deu o processo de adoção do modelo colombiano no Recife, que houve a presença de um embaixador da PP, uma vez que Murilo Cavalcanti teve relevante liberdade de atuação e orientação durante todo o processo. Sua imagem pública está fortemente atrelada ao Compaz, segundo o chefe de projetos especiais (Damasceno 2023): “Quando todo mundo fala do Compaz, nunca associa a figura do prefeito, mas sim a figura do Murilo”. Se, por um lado, isso evidencia o elevado grau de empenho demonstrado por esse ator com relação ao projeto, por outro, essa personalização excessiva da PP pode representar um risco, especialmente com a troca de gestão, tanto da Sesec9 quanto de outros órgãos dentro do município. Essa personalização pode levar à vulnerabilidade da PP, uma vez que mudanças nas administrações podem resultar na descaracterização ou até na descontinuidade da política ou projetos herdados de gestões anteriores, um fenômeno recorrente na política brasileira.
Contudo, a gerente do Compaz (Cavalcanti 2023) afirmou que “o Compaz hoje é mais do que o próprio Murilo. O programa cresceu, tem outras dimensões, e vai chegar a lugares que Murilo não chegaria”. O que sugere que, apesar da forte associação inicial com um gestor, a PP tem potencial para se expandir independentemente de sua figura original. A institucionalização e o reconhecimento amplo do Compaz sugerem que o programa pode se tornar uma PP resiliente e de longo prazo. Além disso, a integração comunitária e os resultados alcançados pelo centro podem servir como argumentos adicionais para sua continuidade, independentemente de mudanças políticas. A construção de uma base sólida de apoio popular e de resultados concretos é fundamental para a perenidade de qualquer PP.
Considerações finais
O estudo indica que houve a transferência da PP dos Parques-Biblioteca de Medellín para o Recife. A ida de agentes públicos do Recife para Medellín, e vice-versa, e as diversas estratégias de aprendizado estabelecidas ao longo do processo viabilizaram a sua implementação. Os objetos de natureza da PP que viajaram foram os seguintes: os objetivos da política — maior presença do Estado em territórios vulneráveis com altos índices de violência, criminalidade e pobreza; o conteúdo e ações da política — participação social e aproximação com a comunidade; relevância do design para o sentimento de valorização e pertencimento local; metodologia de implantação; e formação de uma cultura cidadã.
Foi possível identificar que a forma de tradução da política foi a emulação, ou seja, a PP do Recife guarda similaridade com a de Medellín, com adaptações e ajustes à sua realidade. Os mecanismos pelos quais o processo se deu foram principalmente três: o networking, em razão das redes de relações e contatos estabelecidos entre atores do Recife e de Medellín; a circulação de indivíduos, que diz respeito à participação de agentes em diferentes espaços, como fóruns, eventos e capacitações, estimuladas principalmente pelo embaixador de PP; e a construção social, que considera o prestígio conquistado por Medellín ao mudar sua imagem de uma cidade marcada pela violência para uma cidade modelo de inovação, além das similaridades entre os territórios, como um incentivo ao deslocamento da PP.
Para a explicação do processo, foi necessário destacar a agência do ex-secretário de Segurança Cidadã do Recife Murilo Cavalcanti como embaixador da PP. A pesquisa apontou que, por meio de seu comprometimento, conhecimento e atuação, o ator desempenhou papel crucial na internacionalização, adaptação e implementação dessa política. Vale ressaltar que ele também foi responsável pela disseminação do modelo do Compaz para outros contextos — como as Usinas da Paz, no Pará (Garcia 2021), conectando e influenciando diferentes atores na promoção da PP.
Os Compaz possuem sete anos de funcionamento e, apesar dos produtos imediatos entregues à comunidade, os gestores entrevistados ressaltaram algumas dificuldades: i) falta de orçamento; ii) problemas na infraestrutura dos prédios e iii) baixa quantidade de vagas proporcionalmente à procura dos moradores. Adicionamos outros dois problemas: a ausência de lei que institucionalize a PP e garanta sua manutenção para além do ciclo de governo do município; a não integração e coordenação da PP do Compaz com as outras intervenções urbanas e outras políticas de enfrentamento dos problemas públicos que ela aborda.
Essa última problemática, inclusive, é uma das diferenças que o estudo identificou entre a PP original e a implementada no Recife. O Compaz concentra diversas atividades e serviços em um único equipamento, com foco na prevenção à violência e no fortalecimento da cidadania nos territórios que ficam no entorno dos edifícios; já em Medellín, a política visa a uma reconstrução mais abrangente do espaço social, abordando mobilidade, educação, cultura, com diversos equipamentos públicos espalhados pela cidade e integrados de forma coordenada. Os Parques-Biblioteca são um dos equipamentos. Todavia, fica nítido que, em decorrência das interações entre os distintos atores de Medellín e do Recife, e dado o interesse e esforço do secretário de Segurança Cidadã da época, a PP está sendo colocada em prática, levando em consideração as necessidades e as possibilidades locais.
O presente estudo não buscou aprofundar a análise sobre os resultados alcançados e impactos da PP, ou seja, a eficácia da política não foi objeto da pesquisa; no entanto, a avaliação dos resultados é questão relevante e complementar que pode ser considerada para pensar a viagem da política e sua continuidade, independentemente do embaixador de políticas.
Outros estudos complementares são necessários para compreender as resistências ao processo, o papel dos stakeholders e a influência de organizações nacionais e internacionais. Há ainda abertura para uma discussão conceitual que permita compreender em que medida a atuação internacional de governos subnacionais periféricos se diferencia de outros governos e consegue traçar os próprios rumos em processo de difusão de PPs.
Referências
* Artigo financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), edital 9/2023.
1 A PP de Medellín foi fonte de aprendizado para a implementação do projeto Utopias (Unidades de Transformação e Organização para a Inclusão e Harmonia Social, na sigla em espanhol), na cidade mexicana de Iztapalapa (Cavalcanti 2022). Para mais informações sobre o projeto, ver também: https://www.utopiasiztapalapa.com/
2 No Brasil, as cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro também implantaram PPs inspiradas nos Parques-Biblioteca de Medellín (Silva 2016; Souza e Couto 2018).
3 Vale ressaltar que o trabalho de campo observou rigidamente os princípios éticos em Ciências Humanas e Sociais conforme previsto na Resolução 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde do Brasil (Ministério da Saúde 2016)
4 De acordo com Secchi (2010), a análise multinível reconhece como PPs tanto as macrodiretrizes estruturantes, no nível estratégico, como as do nível intermediário e operacional. Assim, uma PP estruturante pode ser composta de outras PPs que a operacionalizam.
5 O começo dos anos 2000 é marcado por uma queda nos índices de violência. A taxa mais baixa apresentada para o período foi em 2007, com 34 homicídios por 100 mil (Piedad e Diana 2010).
6 Apenas em 2022 foi estabelecido um acordo de cooperação entre as cidades de Medellín e Recife (Prefeitura do Recife 2022).
7 O Sistema S, famoso pelas escolas técnicas, refere-se a prestadoras de serviços administradas de forma independente por federações empresariais dos principais setores da economia. Essas entidades não fazem parte do governo, mesmo oferecendo atendimento de interesse público (Teixeira 2023).
8 O “Pacto pela vida do Recife” é a PP de segurança urbana e prevenção da violência urbana da prefeitura do Recife criada em 2013. Prefeitura do Recife. Pacto pela vida. Plano Municipal de Segurança Urbana e Prevenção da Violência. https://www2.recife.pe.gov.br/sites/default/files/pactopelavida.pdf
9 Murilo Cavalcanti deixou a Secretaria de Segurança Cidadã em abril de 2024.
Ana Pollinny de Freitas é bacharel em Relações Internacionais. Atualmente é pesquisadora do Grupo de Estudo em Internacionalização de Políticas e Cooperação Internacional e assessora de planejamento na Secretaria Municipal da Juventude de Fortaleza, Ceará. Suas pesquisas tratam sobre a difusão de políticas públicas e paradiplomacia. * anapollinnyf@gmail.com ✳ https://orcid.org/0009-0005-9368-0176
Eliane Superti é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos. Bolsista Produtividade em Pesquisa. Professora titular do Departamento de Relações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Políticas e Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba. Suas pesquisas tratam sobre internacionalização de políticas públicas, Amazônia, comunidades tradicionais e meio ambiente. Últimas publicações: “Governos subnacionais e a internacionalização de políticas no nordeste brasileiro: uma análise da atuação das secretarias estaduais” (em coautoria), Boletim de Economia e Política Internacional — BEPI 37: 71-89, 2023, https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/13244; e “Por que o Brasil precisa de um Sistema Nacional de Educação Superior, Ciência e Tecnologia?”, Ciência e Cultura 75: 13-26, 2023, http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20230007. * esuperti@gmail.com ✳ https://orcid.org/0000-0003-2620-1401
Liliana Ramalho Fróio é doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora associada do Departamento de Relações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Políticas e Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba. Suas pesquisas são sobre atuação internacional de governos subnacionais (paradiplomacia), história das relações internacionais, história da política exterior do Brasil e cultura nas relações internacionais. Últimas publicações: “O ensino de história das relações internacionais no Brasil. Perspectivas e ausências” (em coautoria), Carta Internacional 17 (2): e1243, 2022, https://doi.org/10.21530/ci.v17n2.2022.1243. * liliana.froio@gmail.com ✳ https://orcid.org/0000-0003-4117-7315