Introdução
O objetivo deste trabalho foi avaliar a produção residencial de Lina Bo Bardi sob a ótica de seus padrões espaciais, com vistas a identificar conexões entre as relações sociais e a lógica de apropriação dos espaços, e ir além de aspectos estéticos e plásticos dos edifícios, tal como preconizou Julienne Hanson da sintaxe espacial (SE). Embora haja diversas análises da produção arquitetônica de Lina sob diversas óticas e, paralelamente, uma grande linha de pesquisa que utiliza esse aparato teórico-metodológico, não foram localizados trabalhos que interligassem as duas.
A arquitetura moderna brasileira é com frequência reconhecida no contexto internacional pelos feitos de Oscar Niemeyer e Lucio Costa: o primeiro, pela inusitada plasticidade ondulante do concreto armado e o, segundo, principalmente, pelo plano urbanístico de Brasília. Mas muitos arquitetos atuantes no país naquele momento buscaram atrelar os conceitos modernos internacionais a um sentimento de brasilidade. Por meio de junção da linguagem purista internacional preconizada por Le Corbusier às artes decorativas — como painéis de azulejos à feição da tradicional arte colonial luso-brasileira —, a produção local destaca-se por uma plasticidade dinâmica e um jogo espacial fluido e imbrincado com o paisagismo. Ou, ainda, pela força que a adequação bioclimática desempenhou nos partidos arquitetônicos, por meio de elementos de controle de luminosidade e temperatura como os brise-soleils — ou sua versão nacional, o cobogó.
Ressalta-se nesse contexto a produção de Lina, arquiteta de origem italiana que, ao chegar ao Brasil em finais dos anos 1940, explora o modernismo internacional, mas que logo se aclimata ao sabor local da cultura popular e desenvolve sua visão social e humanista atrelada a uma forte definição estrutural e plástica nos seus edifícios. Consagrada pela concepção do Museu de Arte de São Paulo (MASP) e por diversos projetos de requalificação patrimonial, é uma das mulheres com maior visibilidade no Brasil e, quiçá, no mundo.
Num recorte da sua vasta produção arquitetônica, teórica e prática, este trabalho foca-se na avaliação de sua obra residencial: (1) a Casa de vidro (1949-51, São Paulo), residência da arquiteta e de seu marido, hoje sede do Instituto Lina Bo e Pietro M. Bardi; (2) a casa do Chame-chame (1958, Salvador), projetada para Gilka e Rubem Nogueira, infelizmente demolida em 1984, e (3) a residência da artista plástica Valéria Piacentini Cirell (1958, São Paulo), também referenciada como a “casa do Jardim de Cristal”, após reformas.1
A escolha pela escala residencial justifica-se pela abordagem de Julienne Hanson, arquiteta inglesa e professora da Bartlett School of Graduate Studies. O “habitar” é um fenômeno complexo ao trazer consigo uma riqueza de elementos sociais e simbólicos. Entretanto, essas informações geralmente passam despercebidas pelos ocupantes (e mesmo nas pesquisas arquitetônicas) pela sua trivialidade cotidiana, mas cujo estudo pode revelar padrões espaciais que são “[...] regidos por convenções complexas sobre quais espaços existem, como estão conectados e sequenciados, quais atividades acontecem juntas e quais são separadas”.2 Uma segunda justificativa para o enfoque encontra-se na possibilidade de traçar comparativos entre os exemplares, mesmo que pertencentes a um recorte temporal e estilístico divergente.
Hanson participou na gênese da formulação da SE e no livro Decoding Homes and Houses; ela e outros pesquisadores exploram não apenas uma “lista de atividades ou cômodos”, mas também por seus “padrões espaciais, governados por intrincadas convenções sobre quais espaços existem, como são conectados entre si e sequenciados, quais atividades acontecem juntas e quais são apartadas”.3 Este trabalho, portanto, permite construir uma ponte de discussão entre as obras — construída e teórica — das duas arquitetas de modo a contribuir com um novo olhar aos estudos historiográficos da arquitetura moderna.
Sintaxe: teoria e método
O posicionamento teórico da SE é libertar o entendimento da arquitetura a partir de rótulos que dependem de grupos e da sociedade como um todo e que podem mudar com o tempo, pois estes são significados sobrepostos à arquitetura, uma semântica, mas não são seus elementos essenciais. Em geral, “[...] as teorias [arquitetônicas] têm sido extremamente normativas e pouco relacionais”;4 propõe-se que, no lugar de postular uma fórmula e tentar a qualquer custo encaixá-la em edifícios e cidades, se estude o fenômeno em si para descobrir as suas relações intrínsecas. O que se busca é a sintaxe, ou seja, aquilo que é contido na própria configuração da arquitetura, que se mantém independentemente de tempo, lugar, sujeitos, etc.
A SE estuda a relação entre o espaço e as práticas socioculturais mediante a representação e quantificação da configuração espacial, entendida como um sistema de permeabilidades e barreiras (áreas acessíveis ou não ao nosso movimento) e de opacidades e transparências (aquilo que é ou não facultado à nossa visão). A metodologia avalia o potencial da estrutura espacial quanto à geração de movimento, visibilidade, acessibilidade e outros fatores que se associam a essas propriedades.
Neste estudo, serão utilizados dois métodos preconizados pela teoria da SE: a análise convexa (os grafos justificados) e a análise gráfica visual. Ambas se derivam da Teoria dos Grafos que estuda objetos combinatórios — os grafos —, que são um bom modelo para muitos problemas da matemática, e que foi apropriada por Hillier e Hanson5 para descrever propriedades morfológicas da forma arquitetônica. Ela é aplicada à análise espacial por meio da sua associação aos estudos topológicos e, portanto, relacionais, procurando evidenciar as conexões dentro do sistema e suas propriedades: integração, profundidade, distributividade, simetria, conectividade.
O procedimento para a representação da primeira análise é a construção de um mapa convexo, no qual, a partir da planta baixa, se delimitam polígonos bidimensionais nos quais todos os seus pontos são diretamente acessíveis e visíveis a partir de um ponto arbitrário. Esse mapa pode ser simplificado em um grafo que compreende nós (node) que representam os espaços e as linhas (edge) que são a abstração das conexões, passagens, vãos, cruzamentos, ou seja, as permeabilidades.6 Para facilitar a leitura, é possível organizar esses grafos de maneira justificada, ou seja, alinhando o grafo a partir de um nó de referência, denominado de raiz. Isso permite capturar as propriedades topológicas da configuração espacial e definir “um modo de análise que combina o deciframento visual de padrões com procedimentos de quantificação”.7
Outro método é a análise do grafo de visibilidade ou Visibility Graph Analysis (VGA). Partindo de uma adaptação do conceito de isovistas (polígono definido por tudo que pode ser visualizado a partir de um determinado ponto), mas buscando lidar com a questão sob uma ótica global, Turner et al.8 consideram todos os pontos — ou quase todos (pois as ferramentas computacionais calculam através de uma malha mais ou menos espessa) — de um determinado espaço (fig. 1).
Figura 1.
Representação simplificada da elaboração de um gráfico de visibilidade. Fonte: elaboração própria (2017).

As plantas baixas foram redesenhadas por meio de ferramentas computacionais, quando foram identificadas as permeabilidades — portas e passagens entre os cômodos — e barreiras — paredes, armários, janelas.9 Essa abstração é levada ao software Depthmap, que calcula os paramentos grafo-numéricos que expressam diversas propriedades espaciais. Usaremos a variável de integração visual, definida como o potencial de um ponto ser visto ou percorrido. Esse cálculo correlaciona-se com padrões de copresença e usos dos lugares de modo que localizações com maior visibilidade (cores quentes) tendem a denotar maior hierarquia, destaque, importância etc. Por outro lado, áreas com baixa visibilidade (cores frias) tendem a ser menos importantes dentro do conjunto, ou ainda a serem percebidas como áreas com maior privacidade (fig. 1).
Estabelecendo o diálogo: análise sintática das casas
As três casas, quando avaliadas inicialmente pela sua componente plástica, são muito diversas e podem ser classificadas como dois momentos distintos: a Casa de vidro representa a primeira obra construída pela recém-chegada da Itália e é, portanto, permeada pelos paradigmas modernos europeus, enquanto as outras duas casas são posteriores às incursões aos “Brasis” além do eixo Rio-São Paulo. Lina visitou Salvador em 1958, ano de projeto dessas residências, cidade com a qual a arquiteta irá estabelecer fortes laços e que irá influenciar sua arquitetura desde então.
Apesar dessa distância cronológica e conceitual, as casas 1 e 3 localizam-se no mesmo bairro: o Morumbi. Em meados de 1948, as antigas fazendas e chácaras daquela região a cerca de 15 km do centro de São Paulo foram loteadas pelo engenheiro Oscar Americano sob inspiração urbanística da “cidade jardim”. Os grandes lotes arborizados logo atraíram as elites paulistas, e diversos arquitetos atuantes na cidade assinaram projetos na região, como Warchavchik e Bratke.
A Casa de vidro representou uma espécie de showroome consagrou o modelo das californianas case study houses para o novo bairro.10 A reminiscência à estética purista internacional da Casa de vidro é expressa por Lina ao explicar que “não foram procurados efeitos decorativos ou de composição, pois o objetivo é a sua extrema aproximação com a natureza”.11 A singeleza da estrutura metálica, as paredes de vidro, a adequação à topografia e a criação de pátios tornam a relação interior-exterior extremamente fluida. Hoje a casa camufla-se na natureza também pelo seu denso jardim (fig. 2). Entretanto, já está ali presente uma adequação dos paradigmas corbusianos por meio da inserção na casa de vários contrapontos “[...] metade transparente, metade opaca; metade pública, metade privada; metade moderna, metade tradicional; metade aérea, metade aquática; metade apoiada sobre o terreno, metade sobre pilotis”.12 E essas dualidades e tensões permeiam toda a obra de Lina.
Figura 2.
Fachada lateral da Casa de vidro, na qual se vê, em primeiro plano, o volume apoiado sobre o terreno (cozinha) e, em segundo, o volume sobre pilotis. Fonte: foto da autora (2017).

Quanto à distribuição espacial, a utilização de um pátio para a separação do volume que aloja as atividades principais daquele de dependências de serviço é presente na Casa de vidro e na de Valéria. Uma similitude entre a Casa de vidro e a do Chame-chame é sua organização em torno de uma árvore preexistente nos lotes. Na primeira, a planta é envolvida no piso superior por um “aquário” de vidro, enquanto na segunda uma jaqueira atravessa a fachada de volumetria sinuosa. Entretanto, na casa soteropolitana — e também na Casa de Valéria (fig. 3), ao invés paredes lisas e “limpas”, temos a rugosidade, promovida por um processo artesanal de revestimentos compostos por seixos rolados e vegetais aos quais se somam objetos de refugo, como cacos de cerâmicas e vidros, pedaços de brinquedos de plástico, conchas do mar etc., por vezes referenciado na literatura como similar ao trabalho de Gaudí.13 Essa plástica de fachadas está relacionada ao seu discurso, que defendia uma busca pelo vernáculo, numa crítica à massificação da industrialização.
Nesse sentido, o modernismo brasileiro antecede e idealiza o regionalismo crítico,14 pois a inserção de um “sabor local” foi defendida por Lucio Costa e demais vanguardistas relacionados à renovação artística brasileira desde a Semana de Arte Moderna de 1922. Agenciou-se uma “antropofagia” da cultura europeia em busca da independência cultural do Brasil, que culminou no brazilian style, que se dissemina nas décadas de 1940-1950.15 Mesmo que deslocada dessas discussões iniciais, Lina logo se insere na procura por uma arquitetura técnica e simbolicamente aclimatada à realidade brasileira. E, talvez numa visão mais palpável da brasilidade, desloca a discussão de um passado — colonial, elitista e idealizado — para o momento presente do Brasil quando ressalta a importância do vernáculo, da “arquitetura pobre”, pois “[..] o homem simples da casinha de pau-a-pique era um sujeito social contemporâneo, um presente popular”.16
Para traçar um comparativo entre as estruturas espaciais das casas, organizou-se a setorização funcional. Foram definidos quatro setores: (1) serviço (em verde), que engloba cozinhas, lavanderias, depósitos, dormitórios de empregados; (2) social (em amarelo), com as salas de jantar e estar, lavabos, varandas; (3) íntimo (em lilás), que compreende os dormitórios, banheiros e closets, e (4) espaços de transição (em cinza), identificados como as circulações, corredores e escadas das residências.
As quantidades e tipos de ambientes mudam em cada caso, de acordo com o programa de necessidades imposto. A Casa de vidro (fig. 4) e a do Chame-chame (fig. 5) são mais complexas, ou seja, com mais cômodos e diversas permeabilidades entre eles e o exterior, enquanto a Casa Valéria (fig. 6) tem uma menor quantidade de espaços. Os grafos planares são justificados com vistas à leitura da sua profundidade e foram construídos a partir de três nós: espaço exterior, escada e banheiro da suíte (fig. 7), o que nos permite especular sobre o acesso de um visitante ou a partir de um espaço de acesso restrito.
Figura 4.
Planta baixa da Casa de vidro com indicação dos espaços convexos. Fonte: Oliveira, Lina Bo Bardi (p. 26), editado pela autora (2017).

Figura 5.
Planta baixa da Casa do Chame-chame com indicação dos espaços convexos. Fonte: Oliveira, Lina Bo Bardi (p. 57), editado pela autora (2017).

Figura 6.
Planta baixa da casa de Valéria Cirell com indicação dos espaços convexos. Fonte: Oliveira, Lina Bo Bardi (p. 44), editado pela autora (2017).

Ao analisar a distribuição desses ambientes, é possível perceber a separação funcional nas residências, segregando em polos opostos espaços íntimos e de serviço. Esse isolamento é também reforçado pela divisão do programa em dois pavimentos, exceto na Casa de vidro, por sua relação particular com a topografia. Amorim identificou o “paradigma dos setores” como condicionante da rígida setorização encontrada nas residências brasileiras até os dias atuais. Para ele, para que as casas “[...] funcionem adequadamente devem ser organizadas em setores distintos (social, serviço, privado), articulados entre si para garantir uma perfeita ordem nas atividades cotidianas”.17 Entretanto, essa organização, antes realizada de modo intuitivo, a partir de finais do século XIX no Brasil, passa a ser discutida teoricamente e reaplicada de modo reflexivo, mesmo que por vezes os discursos sejam opostos à prática. Acredita-se que essa rigidez se relaciona com o perfil dos proprietários das residências: pertencentes à burguesia urbana em ascensão, de alto poder aquisitivo e que empregam funcionários para a realização das tarefas domésticas.
Tomando como referência o espaço exterior, as três casas possuem a mesma profundidade — com sete níveis (fig. 7). Os espaços de transição oferecem distribuição de fluxos entre os ambientes, por exemplo, nos grafos que partem da escada, observa-se uma redução do número de passos topológicos. A exceção está na Casa de vidro, visto que a escada ali é um elemento muito mais escultórico em um térreo pouco ocupado. Na Chame-chame, essa redução é mais relevante, de sete para cinco, enquanto na casa de Valéria é de apenas um nível. Por outro lado, quando avaliamos os sistemas partindo do espaço íntimo, o banheiro da suíte, aumenta-se a profundidade. Isso reforça o argumento da rígida separação funcional, uma vez que a experiência de um visitante, empregado ou morador é bastante diferenciada e por vezes dificultada.
As casas são organizadas por um “anel de permeabilidade”. Ou seja, partindo de um determinado espaço, podemos atravessar uma série de outros espaços e chegarmos novamente à origem da sequência, mas por outro lado. Ver, por exemplo, o anel formado no piso superior da Casa de vidro: hall (1), estar (3), lareira (4), jantar (5), cozinha (10), corredor dos quartos e novamente hall de entrada. Essa configuração é responsável pela alta integração dos sistemas e, segundo Holanda, “[...] vários estudos empíricos têm sugerido que um edifício bem integrado favorece um sistema de interfaces intenso e informal, enquanto edifícios mais segregados correspondem a status mais fortes e relações constituídas de maneira mais hierarquizada”.18
Estamos diante de uma contradição: as casas são rigidamente separadas, mas a estrutura geral é bem integrada. Talvez esse seja mais um contraponto que Lina insere em seus projetos. Ao mesmo tempo que ela replica a organização tradicional, insere elementos (topografia, átrios, permeabilidades etc.) que ressignificam essa tipologia. As VGAs (figs. 8, 9 e 10) confirmam essa hipótese.
Figura 9.
VGA da casa do Chame-chame. Fonte: redesenho de Ana Carolina Machado; elaboração própria (2017).

Figura 10.
VGA da casa de Valéria Cirell. Fonte: redesenho de Ana Carolina Machado; elaboração própria (2017).

Em geral, os espaços de maior integração visual (cores quentes) são de uso social ou definem os percursos principais. No pavimento superior da Casa de vidro, os pontos de maior integração visual (em vermelho) estão na sala próxima à lareira, local cuja importância remonta a tempos imemoriais, talvez numa reminiscência às domus da Roma antiga para aproximarmos à vivência dos Bardi na Itália. Várias fotos do casal são sitiadas nesse espaço, o que corrobora com a importância alegórica deste local. Outro ponto destacado é a entrada da cozinha que interliga a área social à área íntima por meio do corredor de acesso aos quartos, este calculado numa escala intermediária de integração. Deste ponto, tem-se um grande domínio visual dos três setores funcionais da casa. No extremo oposto dessa escala, as áreas de serviço estão em cores frias, ou seja, são mais segregadas. Essa representação confirma novamente nosso argumento de rígida separação funcional das casas e da sua quebra proposital com a importância da cozinha.
Essas modelagens refletem um paradoxo entre o discurso e a prática projetual não só da arquiteta, mas também que se estende ao movimento moderno como um todo. Embora calcado num ideário de valorização do homem e de transformação social, parte dos edifícios construídos — como os aqui apresentados — era destinada para as camadas de maior poder aquisitivo, que não estavam interessadas em mudar drasticamente seu modo de viver.
Considerações finais
Este artigo procurou estabelecer o diálogo entre essas duas arquitetas aproximando a obra construída de uma com as reflexões teóricas da outra. Embora a obra de Lina já tenha sido estudada sob diversas óticas, este artigo buscou acrescentar a visão espacial à literatura sobre o tema. Hanson lembra que não é objetivo das análises espaciais substituir ou sobrepor em importância pesquisas que busquem a compreensão do tema sob outras perspectivas; muito pelo contrário, ela acredita que “estudos configuracionais desta ordem provavelmente nunca substituirão análises arquitetônicas mais convencionais baseadas na forma material da moradia, no modo de construção, na geometria e proporções da planta, no uso de materiais e no detalhado rebuscamento das fachadas”.19
Esse trabalho contribui para uma descrição espacial da vida doméstica e como a arquiteta parece contraverter algumas regras do morar brasileiro. As casas de Lina, embora reafirmem características tradicionais, também sugerem rupturas nesse sistema. Na casa que faz para si mesma, suas contradições são amalgamadas à composição. Na casa soteropolitana, de uma família tradicional, as quebras parecem estar mais no nível plástico do que na estrutura espacial. O pavimento superior da casa de Valéria parece quebrar com antigas normas de privacidade, ao colocar o quarto principal num mezanino aberto à área social no pavimento inferior. E, nessa casa, a lareira não desempenha o mesmo papel de centralização, o qual recai sobre a varanda: ambiente de interligação entre o “dentro” e o “fora”, entre o “visitante” e o “morador”, extremamente importante enquanto espaço de vivência naquelas casas do homem sertanejo que Lina tanto apreciava. A casa de Valéria é talvez uma reprodução simbólica desse morar “pobre”, no qual a varanda é o espaço de maior excelência do trivial e onde a sobreposição de funções (receber as visitas, descansar numa poltrona ou rede, alimentar-se etc.) é a regra, jamais uma exceção.
Infelizmente, os dados de quem eram, como viviam e o que almejavam os moradores se perderam com os anos, o que dificultou nossa análise em seu componente social que talvez expusesse outras “densas contradições entre a crença das pessoas sobre suas casas e as reais experiências em morar nelas”.20
Também não se encerram com essas páginas as leituras espaciais que podem ser feitas sobre as casas e demais edifícios da obra de Lina. Por exemplo, outras modelagens devem ser feitas para a avaliação da integração visual especulando usos e apropriações das casas: janelas/cortinas abertas, portas externas fechadas/abertas ou a inserção dos limites do terreno como a barreira das permeabilidades. Afinal, um dos atrativos dessas ferramentas de representação é a possibilidade de combinar a redução/simplificação de situações complexas com um amplo potencial especulativo.
As casas de Lina, apesar de retomarem a tradicional setorização funcional da casa brasileira, propõem uma série de afrontes aos elementos formais que marcavam o exterior das edificações modernas em seu trabalho com rugosidades e materiais de revestimentos não usuais. Ela também propõe transformações na organização espacial das residências, pois o sistema de barreiras e permeabilidades é alterado pelo modo como a arquiteta interliga física e visualmente interiores e exteriores.