Introdução
“Meio escritor, meio ator, meio animador; generoso, combativo, empreendedor, simpático — a sua maior obra foi a ação nos palcos nas palestras na literatura falada que perde bastante quando é lida. Como os oradores, como certo tipo de poetas, como os repentistas e os velhos glosadores de mote, a dele foi uma literatura de ação e comunhão, feita para o calor do momento e a comunicação direta, eletrizante, com o público”[1].
Este artigo, inserido dentro das perspectivas da história cultural e história e música[2], focaliza a trajetória de um agente cultural —Cornélio Pires—, cujas ações procuraram preservar a cultura caipira difundindo-a por meio de publicações, registros sonoros/gravações, montagens de espetáculos (encenações e música, apresentando violeiros e grupos musicais) e viabilizando sua divulgação pelo rádio.
Para tanto, inicia-se recuperando as intensas transformações urbanas na cidade de São Paulo e os processos de estranhamentos ante a aceleração das mudanças; em contraposição, observa-se a emergência das representações idílicas do campo associadas com as formas de vida consideradas naturais, simples e vinculadas com a presença urbana de muitos migrantes dos interiores. Segue-se o questionamento sobre a presença dos estrangeiros e o caldeamento cultural na cidade, o que gera polêmicas que envolveram diferentes setores intelectuais, que questionaram as raízes da nação e do seu povo, e constituem vertentes que valorizaram o homem interiorano (sertanejo, caipira)[3]. Por fim, integrado a esse contexto, buscou-se rastrear a trajetória, atuação e problematizar a produção de Cornélio Pires.
1. São Paulo: entre o campo e a cidade
Em 1863, a ferrovia Santos-Jundiaí conectou a cidade de São Paulo ao porto exportador-Santos e ao interior do Estado; os trilhos não só transportavam rápida e eficientemente o café, também traziam de várias partes do mundo toda uma gama de produtos, influências e pessoas, o que gerou e dinamizou um “vetor modernizador”[4]. Nos inícios do século XX, a expansão urbana de São Paulo esteve vinculada diretamente com os sucessos e/ou dificuldades da economia cafeeira, o que levou à consolidação da cidade como centro econômico e político, mercado distribuidor e receptor de produtos e serviços. As ações desencadeadas pela elite paulista, que promoviam a imigração em proporções superiores às possibilidades de emprego no campo, favoreceram o crescimento da população urbano, também implementado por levas de migrantes interioranos.
Em 1872, quando a cidade já sofria as consequências do surto cafeeiro, a população de São Paulo totalizava 31.385 pessoas e elevou-se para 64.934 em 1890; ao passo que em 1900 já eram 239.820 moradores e, em 1920, chegou a 579.033 habitantes. O crescimento acelerado e o desenvolvimento da indústria transformaram São Paulo; entre 1920 e 1940, a população atingiu 1.326.261 pessoas[5], o que constitui um mosaico diversificado de grupos étnicos e seus descendentes, que juntamente com os deslocados do interior do Estado e de outras regiões do país, conviviam numa multiplicidade de culturas, tradições e sotaques. A atração exercida pela cidade concentrou um significativo contingente de trabalhadores; uns se dirigiam para o comércio, obras públicas, construção civil, serviços e indústria, outros ficavam nas atividades por conta própria, o que gerou experiências múltiplas e diversificadas e constituiu uma massa que excedia as necessidades do mercado e aviltava salários, mas também criava possibilidades, mesmo que fossem atividades temporárias, ocupações casuais, improvisações, expedientes variados, muitas vezes eventuais, envoltos em incertezas, tensões e conflitos.
Sob a administração do Conselheiro Antônio Prado (1899-1910), do Barão Duprat (1911-1914), Washington Luís (1914-1919) e Firmiano Pinto (1920-1926), foram feitas intervenções urbanas que aspiravam acompanhar os padrões europeus. Nas zonas Oeste e Sul (vetor sudoeste), buscando áreas mais altas, a elite erguia seus palacetes e incorporava hábitos associados às noções de civilização, luxo e elegância. No entanto, ao longo das ferrovias, nas áreas alagadiças dos rios Tietê e Tamanduateí, estabeleceram-se bairros industriais e de operários, imigrantes e nacionais, espaços carentes de planejamento e da atenção das autoridades.
Desde os finais dos anos de 1920 e nas subsequentes décadas de 1930 e 1940, intensificaram-se a expansão urbana e a industrialização, num processo intenso de metropolização. As intervenções orquestradas nas gestões de Fábio Prado (1935-1938) e Prestes Maia (1938-1945) remodelaram a cidade por meio do denominado “Plano Avenidas”, assentado nos princípios de centralização, expansionismo, verticalização e rodoviarismo[6]. Acentuava-se o potencial de expansão, contudo passava-se ao largo de questões sociais, o que acirrava as contradições e gerava tensões num processo marcado por desigualdade e heterogeneidade. A extensão das periferias superou a capacidade dos poderes públicos de prover a infraestrutura necessária e ampliou o déficit de habitação, dificuldades com o transporte coletivo, iluminação, água, esgoto, asfalto, entre outras.
Nessa febre de crescimento, a cidade tornou-se um “perpétuo vir a ser”[7], caracterizada por ações de demolição-construção, o que gerou estranhamentos, questionamentos e sentimentos de nostalgia. Produziam-se representações polares nas quais a cidade vinculava-se com a ideia de empreendimentos, modernidade e progresso, sendo o campo associado com visões idílicas de uma vida natural, simples e pura. Contrastando, formulavam-se combinações negativas da cidade como espaço do egoísmo, competitividade, perigo e ambição, enquanto o campo era identificado como lócus do atraso, ignorância e rotina.
2. Estrangeiros e nacionais: Jecas e caboclos
No final do século XIX, a expansão cafeeira no Estado de São Paulo provocou uma ampla demanda de braços, num momento já de crise do escravismo, e suscitou tensões em torno da questão do trabalho. A elite paulista formulou um projeto, que, gradativamente, foi institucionalizado numa política de imigração subsidiada pelo Estado, em massa, contínua e familiar[8].
Os proponentes idealizaram um imigrante laborioso, vigoroso, disciplinado, que representasse o progresso e que reabilitasse o ato de trabalhar, acrescentando como benefício a possibilidade de “caiar” o país. No correr do processo, se para alguns deslocados foi possível atribuir adjetivos como: “laboriosos”, “ordeiros” e “dedicados”; em outros casos, as características que melhor os qualificaram foram: “lutadores”, “contestadores”, “inconformados com as injustiças sociais”, representações que se ampliaram ante a atuação dos imigrantes nos movimentos operários e manifestações no campo e nas cidades. Particularmente, depois das greves de 1917-1919, difundiram-se medidas que visavam ao controle, com ações de restrição às entradas e retirada dos considerados “indesejáveis”, o que ampliou os conflitos étnicos, xenofobia e preconceitos.
Nos anos de 1920, constituiu-se um ambiente frutífero para a discussão do estatuto da nação e da busca da nacionalidade, questões presentes no Movimento Modernista (1922), que, além de uma manifestação artística e intelectual, foi também um movimento político, no sentido de contestação à situação vigente[9]. A questão do nacionalismo tornou-se um ponto emblemático para a intelectualidade, que em diferentes perspectivas organizou-se em grupos para expressar suas concepções anunciadas no Manifesto Pau-Brasil (1924) e Manifesto Antropofágico (1928), capitaneados por Oswald de Andrade[10]; em outra vertente, divulgou-se o Manifesto do Verde-amarelismo (1929). Entre vários outros aspectos, problematizava-se a presença dos estrangeiros, denunciava-se o caldeamento cultural e os perigos da miscigenação acirrando as discussões[11]. Nesse quadro, expandiu-se e institucionalizou-se eugenia, que foi identificada como símbolo de modernidade cultural, expressão de cientificidade, vinculada com as noções de evolução, progresso e civilização, propostas convergentes com o imaginário das elites paulistas.
Os debates eugenistas não se limitaram aos círculos médicos, encontravam-se entre seus propagadores e seguidores políticos, juristas, intelectuais e higienistas[12]. A difusão desse ideário ocorreu pela imprensa (Jornal do Comércio, O Estado de S. Paulo, Correio Brasiliense), por meio da publicação de livros, folhetos e artigos em revistas científicas (Boletim de Eugenia), além de conferências, debates e campanhas, como as de luta contra o alcoolismo, doenças venéreas e tuberculose[13]. Considerado o que melhor expressou os anseios dos eugenistas e principal mentor, Renato Kehl[14] difundiu suas ideias que buscavam aprimorar a raça, eliminar elementos de degeneração, reabilitar a saúde física, moral e intelectual do povo, e destacar, assim, a importância da luta pela regulamentação controle seletivo da imigração.
Monteiro Lobato se entusiasmou com a eugenia e trocou missivas com Renato Kehl, a quem denominava de “D. Quixote científico”[15]; os contatos se intensificaram nos anos 1920, quando o eugenista publicou A Esterilização sob o Ponto de Vista Eugênico (1921), mesmo período em que Lobato caracterizaria o Jeca Tatu:
“Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a pica-pau e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra recua para não adaptar-se”[16].
Desse modo, reforçava as características negativas do Jeca (alheio à ideia de pátria, indolente, apático, impenetrável à civilização), o que causava polêmica. Lobato reviu sua visão no artigo “Jeca Tatu, a ressurreição”, incluído no livro Problema Vital (1924), prefaciado por Renato Kehl[17].
Na busca pelas “raízes autênticas” da nação e de seu povo, em oposição às representações negativas do Jeca, diferentes vertentes identificaram o homem interiorano (sertanejo, caipira, caboclo) como trabalhador, forte, inteligente, arguto, maleável, dócil, sentimental, afetivo e sincero, apesar de intimidado no meio urbano. Entre os pensadores que assumiam a missão de refletir sobre a nação, os verde-amarelistas[18] propunham um nacionalismo afirmativo de crença no Brasil, criticavam a visão negativa sobre o sertão e o homem do interior[19], denunciavam o artificialismo das cidades, salientavam os males do cosmopolitismo, destacavam a comunhão do homem com a natureza, valorizavam o sertanejo e o sertão como o lócus e símbolo da nacionalidade[20].
Desde 1917, quando publicou o poema Juca Mulato[21], Menotti Del Picchia apresentava um caboclo “forte como a peroba e livre como o vento”, e identificava-o como elemento original e integrador do nacional. Num cenário modernista, 1928 foi um ano emblemático, com as publicações de Retrato do Brasil, de Paulo Prado; Macunaíma, de Mário de Andrade; Cobra Norato, de Raul Bopp, e Martim Cererê, de Cassiano Ricardo[22]. Este buscava as tradições populares e exaltava suas potencialidades, bem como destacava a importância de transmitir os valores da nacionalidade. Como outros membros do grupo verde-amarelo, desenvolveu uma crítica sistemática ao Jeca; em contraponto, valorizava o homem do interior[23].
Nesse contexto polêmico, Cornélio Pires assumiu o papel de promotor, porta-voz da cultura caipira, além das publicações (prosa e poesia) que coletou e organizou, também cuidou dos registros sonoros e gravações, além da montagem de espetáculos (encenações e música, apresentando violeiros e grupos musicais), o que viabilizou a divulgação da cultura do interior pelo rádio.
3. Na metrópole: sonoridades e radiodifusão[24]
As cidades compreendem experiências urbanas multifacetadas, além de planos e plantas, construções de pedras e tijolos, ruas, avenidas, praças e múltiplas imagens, também se constituem “paisagens sonoras”[25], territórios marcados por polifonias e musicalidades peculiares e diferenciadas. No início do século XX, eram heterogêneos os territórios sonoros em São Paulo; no Bexiga conviviam italianos e negros que constituíam grupos de choro e rodas de samba, também presentes nos Campos Elíseos e Barra Funda, onde os “negros da Glete” e “bambas da Barra Funda” constituíram a mais antiga escola de samba paulista, a Camisa Verde e Branca.
Muitos imigrantes traziam na bagagem seus instrumentos musicais, alguns para uso próprio, outros eram músicos e professores (violonistas espanhóis, guitarristas portugueses, acordeonistas italianos), os quais fundaram escolas e conservatórios, formaram bandas (tocavam nas praças e coretos e ocasiões festivas), grupos musicais, além de participarem de orquestras (Orquestra Municipal). Certos grupos se profissionalizaram e ganharam popularidade atuando em cinemas, teatros, cafés (café-concerto e café-cantante), salões de bailes e também nas rádios[26]. Nas paisagens sonoras noturnas, entoadas pelas madrugadas, ecoavam cantilenas e serenatas entoadas grupos boêmios e músicos. Com o crescimento da cidade, as serestas se popularizaram; elas eram realizadas de modo improvisado e informal, pelas ruas ou em casa de famílias, em dias festivos ou para homenagear a mulher amada. As canções de serestas expressavam sensibilidades circulantes, versos majoritariamente românticos, nos quais destacava-se a presença de músicos em pequenos conjuntos.
Na “Paulicéia desvairada”, a radiodifusão iniciou suas transmissões nos anos de 1920 e expandiu-se na década posterior. O rápido desenvolvimento do rádio, entre outros elementos, deveu-se à agilidade, ao aperfeiçoamento técnico e ao barateamento progressivo do aparelho, que se tornou objeto de consumo e tornou-se parte do ambiente familiar ao ocupar um espaço cada vez maior na vida das pessoas, informando-as, divertindo-as e emocionando-as[27]. As emissoras adquiriram um caráter comercial e voltado para o entretenimento, com programação variada e diária, o que permitiu a contratação e a manutenção de empregados fixos, elenco de cantores, músicos, artistas, e favoreceu, assim, a profissionalização do setor. A identificação do rádio como signo de modernidade e veículo de comunicação possibilitou o crescimento da divulgação de propaganda, com as emissoras que se tornavam comerciais, acompanhada pela diversificação da programação: jornais, novelas, transmissões esportivas, programas humorísticos, religiosos e musicais, que envolviam cotidianamente a todos, transformando-se num veículo integrado a seu contexto histórico.
Na década de 1940, em São Paulo, totalizavam 12 emissoras; nos anos 1950 já eram 17, com destaque para a Record, líder de audiência. As rádios paulistas mantinham conexões com as do Rio de Janeiro, particularmente, com a Rádio Nacional, o que dinamizava a circulação nacional de artistas e sucessos, além de vincular uma produção de caráter regional, que visava mais diretamente ao gosto local. No caso dos programas de humor e musicais, as diferenças regionais se fizeram presentes; os criadores buscavam conexões com os ouvintes priorizando suas preferências.
As emissoras divulgavam uma música que se diversificava rítmica e poeticamente, que acompanhava o mercado fonográfico. A programação paulistana incluía gêneros variados: o erudito e o popular, a música nacional e estrangeira, samba, música nordestina, além das canções de diferentes colônias de imigrantes e seus descendentes (italiana, napolitana, portuguesa, espanhola, argentina, francesa, norte-americana, alemã, russa).
“O rádio no Brasil abriu espaço para que gêneros e estilos regionais urbanos originários nas camadas mais pobres se difundissem, para um quadro regional mais amplo, como ocorreu com o samba, canções sertanejas e choros. Esse fato notável permitiu […] a diversificação e o alargamento das possibilidades de escolha dos artistas e dos ouvintes, provavelmente ampliando e desenvolvendo seu universo de escuta ao invés de regredi-lo”[28].
Muitos homens do campo buscavam possibilidades migrando para São Paulo. Esse afastamento provocava nostalgia da terra, do falar, da culinária, das músicas e costumes. Visando atingir esse público, expandiram-se os programas sertanejos. Bem cedo pela manhã e/ou ao cair da tarde, eram momentos para a audição das músicas, violas e causos caipiras; eram vários os programas de sucesso que contavam com artistas e apresentações de duplas caipiras[29].
4. O campo na metrópole: entre causos e canções
O ano de 1920, Cornélio Pires já atuava na organização de espetáculos, nos quais apresentava anedotas, encenações e músicas com representações acaipiradas, mas foi a partir da década de 1930 que ele ampliou suas ações e constituiu-se num agente de divulgação da cultura caipira, empenhando-se em registrar seus elementos. O processo elétrico de gravação em discos foi difundido no Brasil na década de 1920[30] e isso foi essencial para que Cornélio conseguisse os registros sonoros de causos e canções; contudo, enfrentou a resistência das gravadoras e só conseguiu efetivar seu projeto com seus próprios recursos. A sua primeira produção foi um selo especial pela Columbia: a “Série Cornélio Pires” (1929), que incluía modas de viola, cururus e cateretês. Diante do sucesso, a Columbia passou a apoiar a empreitada e continuou com a série lançando mais de 100 títulos. Para tanto, formou-se, a “Turma Caipira Cornélio Pires” que, graças ao êxito dos discos, estimulou o interesse de outras gravadoras pelo estilo.
Nas gravações buscava-se recriar as narrativas mantendo o sotaque, a forma acaipirada de falar e se expressar nos relatos dos causos, histórias de humor e também por meio das músicas. Nesse conjunto de expressões, o caipira era caracterizado por uma visão de mundo singela, porém com uma esperteza singular e, muitas vezes, humorística[31].
“Quem se mete a debochar o caipira quase sempre sai perdendo, pois ele com aquele seu jeitão de bobo, é fino como ele só e traz sempre a resposta pronta na ponta da língua. Foi o que aconteceu a um chofer que me conduzia de Tietê a Porto Feliz. Numa subida íngreme alcançamos um caipira que subia com o seu trole puxado por uma parelha de burro. Ao passarmos pelo caboclo, o chofer quis debochá-lo gritando:
— Oh, como é que você, com dois burros ficou pra trás homem?
— Num vá esquece que os meu burro anda no vará do trole. O burro do tomóve anda na boleia”[32].
Com o sucesso dos discos[33], ampliaram-se os espetáculos e apareceram os programas de rádio, nos quais se recriaram as temáticas que remetiam ao universo dos interiores, suas músicas, narrativas com histórias que buscavam enfatizar essas experiências. Constituiu-se um movimento contínuo e de reforço mútuo, e a popularização dos programas radiofônicos auxiliou na divulgação das gravações, além de contribuir para firmar o estilo. Também viu-se o número de apresentações crescer, o que ampliou as perspectivas de difusão da cultura caipira. A propagação dessas sonoridades pelos programas de rádio possibilitou a reconstrução, apropriação e recriação da cultura dos interiores na cidade[34].
Não foram muitas as participações de Pires nas rádios; ele teve um programa diário às 18h30, na Difusora[35]. Sua maior contribuição foi ter formatado (modelado) a estrutura desses programas (que se mantém reproduzida até os dias de hoje), que contavam com narração de piadas e causos, quadros humorísticos e de música sertaneja[36]. Outra contribuição de Cornélio foi a introdução no mundo radiofônico de seu sobrinho, Ariovaldo Pires, que adotou o cognome de Capitão Furtado. Num primeiro momento, Ariovaldo foi o responsável pelas mediações com a Columbia para viabilizar as gravações em discos; a partir dessa ocasião, manteve-se presente no universo da cultura caipira tanto nos programas de rádio como nas composições de várias músicas. Em 1939, Capitão Furtado lançou o “Arraial da Curva Torta”, que era transmitido a partir da apresentação ao vivo no auditório da rádio Difusora, onde se buscava reproduzir o ambiente da roça. Nesse programa, foram lançados vários artistas[37].
“Durante os 12 anos em que ficou no ar, lançou artistas como Hebe Camargo, que fazia dupla com sua irmã Estela (Rosalinda e Florisbela), o acordeonista ítalo-caipira Mário Zan, o sambista Blecaute (pseudônimo dado pelo Capitão, inspirando-se no racionamento de energia elétrica, durante a Guerra) e a dupla que alcançaria popularidade nunca antes experimentada por seus congêneres, Tonico e Tinoco. Os caipirinhas pobres, recém-chegados do interior, arrancaram 190 segundos de aplausos —cronometrados— ao final de um concurso para a contratação de violeiros para o ‘Arraial’, em 1943”[38].
Rememorando a importância do “Arraial da Curva Torta”, Tonico e Tinoco deixaram em depoimento a menção ao impulso dado à carreira da dupla depois da apresentação no programa, quando eles conseguiram o primeiro contrato profissional como artistas; também destacavam a ativa participação do auditório:
“Quando terminamos de cantar, o auditório todo se levantou: aplaudiram com lágrimas, pedindo bis, pois cantávamos de modo diferente; com afinação, fino e bem alto. O cronômetro marcou 190 segundos. Todos os violeiros vieram nos abraçar, e nós, com um nó na garganta, não conseguíamos falar. Vencer todas as duplas! Para nós foi um milagre, uma bênção de Deus.
Foram duas festas: nesse dia, a Rádio Tupi comprara a Rádio Difusora e, assim, fomos contratados pelas Emissoras Associadas para o programa ‘Arraial da Curva Torta’, da Difusora, e para o programa ‘Saudade’”[39].
Cabe ainda mencionar Sorocabinha, que participou das primeiras gravaçõesda “Turma Caipira de Cornélio Pires”, e que, posteriormente (1936), também se tornou apresentador na Difusora. Os discos eram amplamente utilizados nesses programas sertanejos[40], em virtude do número reduzido de artistas do gênero para apresentações ao vivo. Desse modo, as gravações de Cornélio tornaram-se a base da programação e estrategicamente contribuíram para a popularização do estilo. Portanto, estabelecia-se uma dinâmica de interdependência entre rádio e disco; se o rádio necessitava da reprodução sonora, a divulgação radiofônica era um meio de propagandear os discos comercializados. “O êxito da série caipira de Cornélio pela Columbia, bem como de algumas duplas, estimulou o interesse das gravadoras concorrentes. Por isso, a RCA Victor criou a Turma Caipira da Victor, convidando Manoel Rodrigues Lourenço, o Mandi, para organizá-la […]”[41]. Todo o conjunto das ações de Cornélio, seus escritos, espetáculos, gravações (concretização de um mercado fonográfico para o estilo)[42], atuações nas rádios e criação de um formato de apresentação foi fundamental para possibilitar a circularidade de práticas culturais:
“A produção do autor é bastante ampla, incluindo, a par das constantes contribuições em jornais e revistas, diversas publicações em prosa e poesia, inúmeras tournées, com espetáculos nos quais contavam anedotas e encenavam episódios de temas caipiras, entoando-se cantigas típicas, com a apresentação de violeiros e grupos musicais”[43].
O conhecimento adquirido por Cornélio se constituiu pelas suas andanças e vivências. Ele nasceu em Tietê, no interior de São Paulo. Desde a infância, encontrava arraigado a essa cultura, ele “registrava hábitos, costumes, crenças, casos, lendas e a linguagem do interiorano”[44], principalmente, da sua região natal. As temáticas abordadas, os contatos com músicos e cantantes vinculavam-se a essa inserção, o que o levou aos integrantes da “Turma Caipira Cornélio Pires”, em sua maior parte também do interior, alguns tinham sido trabalhadores na lavoura (Mariano, Caçula e Ferrinho), cortadores de cana (Bastiãozinho) e artesãos rurais (Arlindo Santana)[45].
A matriz cultural de Cornélio remetia aos “causos”, histórias contadas em rodas de conversas com a presença de músicas cantadas ao som da viola; ele se apropriou dessas experiências nas suas gravações, canções, sonoridades, interpretações e formas de falar. Nesse conjunto, o caipira assumiu a figura de protagonista central e foi recriado de forma ambígua, ora como ingênuo, autêntico, sábio, ora como astuto, mentiroso, hábil no trato com o outro.
5. Na Pauliceia tornou-se o “Bandeirante do folclore paulista”
Cornélio Pires foi denominado pelo folclorista Alceu Maynard Araújo de “Bandeirante do folclore paulista”. Nascido em território caipira (Tietê,13 de julho de 1884), desde o seu batizado esteve envolto em causos. Contava ele que o padre que realizou a cerimônia era surdo e teria confundido e trocado seu nome, de Rogério para Cornélio, cabendo levantar a hipótese de que ele tenha reconstruído o ocorrido forçando seus aspectos curiosos:
“Nascido antes do tempo e batizado com nome trocado. E foi Cornélio quem nos contou: ‘meu nome tem sua história. Uma de minhas tias maternas andava de namoro com um parente chamado Rogério Daun. E foi ela que me levou à pia batismal. Ao me batizar, o padre Gaudêncio de Campos, que era nosso parente, e nessa época já velho e surdo, pergunta: ‘— Como se chama o inocente?’ Respondeu minha tia: ‘— Rogério’. E o padre: ‘— Eu te batizo Cornélio…’ Teve que ficar Cornélio… para surdo não há muita diferença entre Rogério e Cornélio […]”[46].
Numa afirmação nacionalista, Cornélio declarava nas entrevistas ser descendente de caciques ao se colocar como personagem de suas próprias histórias e como a representação do brasileiro com raízes indígenas, como alguns dos seus caipiras:
“Como sabe, nasci na roça. Ainda garoto, amanhecia nos fandangos assistindo a cururus e cateretês. Gostava imenso dessas danças e atribuo isso a uma questão de atavismo. Atavismo?! Ou coisa parecida. O cururu e o cateretê são de origem indígena e é bem possível que já fossem dançados pelos meus décimo terceiro e décimo quarto avós, isto é, por Piquerobi e Tibiriçá.
— Você está duvidando, hein? Pois embora isso pareça uma boa mentira, a verdade é que descendo daqueles dois caciques. Já estudei muito bem o caso e cheguei a essa conclusão. Ainda lhe mostrarei a minha árvore genealógica que, aliás, é uma verdadeira complicação internacional.
Enrola o cigarro, acende-o, tira uma baforada e continua:
— Uma complicação tremenda, que eu mesmo ainda não pude entender. Engraçado é que o sangue português que tenho nas veias, pois descendo de Antônio Rodrigues e João Ramalho que, dizem por aí, naufragaram em 1502 e deram à costa de São Vicente — sempre me atraiu, também, para os viras e os fados. Por seu turno, o galho castelhano me deixou inclinação especial para os trocadilhos […]”[47].
No começo dos novecentos, Cornélio se mudou para São Paulo e ficou hospedado com a sua tia Belisária, proprietária de pensão na cidade. O jovem ambicionava cursar a Faculdade de Farmácia; sem sucesso em seu intento, empregou-se no jornalO Comércio de São Paulo e também atuou como revisor em O Estado de S. Paulo e no periódico O Pirralho, em 1914. Foi nessa época que principiaram seus trabalhos de escritor, em que dedicava ao estudo e à divulgação da cultura dos interiores. Em 1910, publicou Musa Caipira, sua primeira coletânea de poesias, com destaque para soneto Ideal caboclo:
“Ai, seu moço, eu só quiria/P’ra minha filicidade
Um bão fandango por dia,/E um pala de qualidade.
Porva espingarda e cutia/Um facão fala verdade,
E u’a viola de harmonia/ P’ra chorá minha sodade.
Um rancho na bêra d’água/ Vara de anzó, pôca mángua,
Pinga boa e bão café…/Fumo forte de sobejo,
P’ra compretá meu desejo,/Cavalo bão — e muié […]”[48].
Cornélio contava ter escrito o livro escondido no banheiro da pensão, por medo de ser ridicularizado e também pela falta de espaço, pois como os quartos eram ocupados por pensionistas, ele dormia no corredor:
“Certa vez, minha tia, dona Belisária Ribeiro, viúva do grande filólogo Júlio Ribeiro, resolveu trazer-me para São Paulo, a ver se conseguia fazer-me estudar. Mas a veia poética não me deixava […] tia Belisária tinha uma casa de pensão, à rua da Quitanda, n. 11 e aí sustentava uma ninhada de sobrinhos, pobres como ela e que queriam estudar. E como os quartos fossem ocupados pelos pensionistas que pagavam, nós, a bem dizer, morávamos no corredor, onde, todas as noites, enfileirávamos nossas camas. Para escrever —temendo ser ridicularizado— fechava-me no banheiro”[49].
Nesse mesmo momento, apresentou no Colégio Mackenzie um espetáculo que reunia catireiros, cururueiros e duplas de cantadores do interior. Tanto nas apresentações e discos como nos seus livros[50], Pires se propunha a divulgar a cultura cabocla. Em 1939, avaliava ter vendido cerca de um milhão de exemplares e apontava que os editores praticavam os “milagres da multiplicação”, aludindo à possibilidade de esse número ser muito superior. Afirmava que o sucesso de vendagem das suas obras se devia à forma como escrevia —para os “não letrados”, com o uso de linguagem simples e capítulos curtos.
Nas entrevistas e apresentações, Cornélio, com o seu cigarro de palha em punho, recriava personagens que contavam causos, era um artifício para garantir autenticidade e identificação com o caipira. Também usava da mesma estratégia para se expressar nos textos e escritos, que visavam transmitir para os moradores da cidade as representações contrastivas de outra cultura, que também era:
“possível vê-las também na ‘reestruturação’ econômica e simbólica com que os migrantes do campo adaptam seus saberes para viver na cidade e seu artesanato pra atrair o interesse dos consumidores urbanos, quando os operários reformulam sua cultura de trabalho frente às novas tecnologias de produção sem abandonar crenças antigas, e quando os movimentos populares inserem suas reivindicações no rádio e na televisão”[51].
Exemplar era Joaquim Bentinho, personagem central de duas das suas obras: As estrambóticas aventuras do Joaquim Bentinho (1924) e A continuação das estrambóticas aventuras do Joaquim Bentinho (1929), representado ao longo da história como um contador de causos, criados pela imaginação do autor sedimentada nas suas vivências e andanças pelos interiores: “Baixinho, miudinho, desnalgado, perninhas finas e canelas luzidias, brilhantes aos reflexos do fogo, ao pé do qual nos reunimos todas as noites, O Joaquim Bentinho é um serelepe, espertinho e perereca […]”[52].
Nas diversas ocasiões que contava os causos, Cornélio incorporava como personagem Joaquim Bentinho e reproduzia sua forma de falar, a estrutura da narrativa e o reforço do testemunho de verdade, o que pode ser observado em o Queima campo, no qual relatava sobre a criação de abelhas:
“— A quistan é que eu tenho uas abeia de uma culidade que ninguém num ter iguar no mundo… São uas abeia noturna…
— Como?
— Minhas abeia tanto trabaiam de dia cumo de noite…
— Mesmo em noite escura?
— Quanto mais escuro que-nem breu, mió! Elas vão campea as fror na escuridão e trais o me…
— Desculpe, Nhô Joaquim; esta é forte demais!… Abelhas voando em noite escura…
O caipira, revoltado ante a minha incredulidade, puxou-me pelo braço, arrastou-me para um canto do terreiro e, com grande mistério, abafando a voz, segredou-me:
—O segredo eu conto, só pra vassuncê… Num conte pra ninguém… Jure!
— Juro respondi, por troça.
— As abeia que eu tenho, que trabaiam de noite… ua inventiva minha… ua idéia que eu tive… São tudo mestiçada cum vagalume […]”[53].
Joaquim Bentinho explicava que havia criado abelhas de “forma mestiça” como vagalume, para que produzissem de noite e de dia. Por meio desse personagem, o autor destacava o caipira, sua inteligência, capacidade de desenvolver certas estratégicas, como a prática da mentira, que se tornava um artifício, tipo de manobra para caçoar de outras pessoas. Na narrativa, a forma de falar e a oralidade foram mantidas, as situações e as questões foram colocadas remetendo às práticas de conversas no meio rural, marcadas pela simplicidade e criatividade de histórias surpreendentes. Assim, representava-se a cultura caipira de forma contrastante e construíam-se sentidos que visavam envolver e divertir, mas que também possibilitavam apropriações e reconstruções do receptor/leitor/ouvinte.
“Metade da arte narrativa está em evitar explicações. […] O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação”[54].
Cornélio também criava representações do caipira na cidade ambientando seus personagens em experiências urbanas, seja como migrante estabelecido seja só de passagem. Em o “Bonde Camarão”, cantada por Mariano e Caçula, integrantes da “Turma Caipira Cornélio Pires”, relatava:
“Vaceis tivero em São Paulo, decerto se arregalarô por lá. Home, São Paulo é lindo, é uma buniteza, mai tem um tar Bonde de Camarão, fai chacoaia o corpo da gente lá dentro. Oh peste dos quinto, é pior do que carro de boi. Intão fizêmo uma moda de viola arrelachano ele. Escuite a moda.
Aqui em São Paulo o que mais me amola/ É esses bonde que nem gaiola/ Cheguei, abriro uma portinhola/ Levei um tranco e quebrei a viola/ Inda puis dinhêro na caixa da esmola!/ Chegô um véio se facerando/ Levô um tranco e foi cambeteando/ Beijô uma véia e saiu bufando/ Sentô de um lado e agarrô assuando/ Pra morde o vizinho tá catingando. /Entrou uma moça se arrequebrando/ No meu colo ela foi sentando/ Pra morde o bonde que estava andando/ Sem a tarzinha está esperando/ Eu falo claro, eu fiquei gostando!/ Entrou um padre bem barrigudo/ Levô um tranco dos bem graúdo/ Deu um abraço num bigodudo/ Um protestante dos carrancudo/ Que deu cavaco c’o batinudo/ Eu vou m’imbora pra minha terra/ Esta porquêra inda vira em guerra/ esse povo inda sobe a serra/ Pra morde a light que os dente ferra/ Nos passagero que grita e berra!”[55].
A canção iniciava-se destacando o narrador que contava sua experiência na cidade — “Vaceis tivero em São Paulo, decerto se arregalarô por lá” —; assim, o rural foi trazido para o urbano e retornou ao rural, tendo como protagonista o caipira; com isso, Pires explicitou encantamento e estranhamento contrastivos, que em sua tensão geraram o humor, e apontou um processo de cultura híbrida[56] presente na sua produção.
Considerações finais
Na década de 1920 surgiram novas inquietações em torno da constituição do “nacional”, que abarcavam o binômio campo-cidade. Nesse momento, São Paulo vivenciou um intenso crescimento urbano-industrial envolto num intrincado processo de caldeamento cultural, o que constituiu um terreno fértil para o surgimento e difusão de movimentos culturais e políticos como o modernista e o eugenista. Embalado por essas polêmicas, Monteiro Lobato criou a figura do Jeca Tatu como a representação do homem do campo, com o qual destacava aspectos positivos e negativos do caipira e de sua cultura. Esses aspectos passaram por criações, recriações e apropriações também presentes na obra de Cornélio Pires.
Assim, na ampla produção de Cornélio, observa-se a construção de representações do caipira e sua cultura, o que possibilita perceber rastros de experiências vividas e idealizadas. Ele buscou trazer para o meio urbano e difundir em seus veículos de comunicação sínteses culturais do que deveria ser contemplado e preservado. Nas suas gravações, escritos e apresentações, o tom coloquial das narrativas dos interiores foi transportado, reproduzido, registrado nos discos e divulgado pelas rádios, a fim de difundir representações e obter conexões com os ouvintes.
Na obra de Pires emergem múltiplas, diversificadas e até ambíguas representações do rural e do caipira. Por um lado, ele valorizava o caipira ao representa-lo romantizado com sentimentos e atitudes simples, autênticas, sinceras e cordiais[57]. Esse homem do interior era imaginado como adaptado harmonicamente ao ambiente em que vivia, resistente e capaz de enfrentar as dificuldades em terras longínquas, sendo visto como apto a atender a várias necessidades, inclusive as do trabalho agrícola, relativizando, assim, a importância do imigrante para as lavouras. Porém, para realizar plenamente tais intentos, o caipira deveria abdicar de seus velhos costumes aproximando-se dos ditos “padrões civilizados”; nessa perspectiva, a educação adquiria um papel de destaque e a obra de Cornélio assumiu um sentido pedagógico e civilizatório, tanto para os que permaneceram no campo como para os que migraram e viviam nas cidades.
De outro modo, o caipira também foi caricaturado e ridicularizado, reconhecido com signo de atraso e ignorância do homem do campo; seus comportamentos impróprios eram apresentados humoristicamente; por meio dessas estratégicas, o rural era identificado com o arcaico e provocava estranhamentos, o que levou ao surgimento das as paródias com os personagens e situações de comicidade. No conjunto da sua obra, Cornélio vislumbrou um processo quase inevitável de extinção da cultura caipiras; diante disso, ele se colocou como um agente de preservação desse patrimônio e foram seus esforços contribuições indiscutíveis para registrar e divulgar valores, hábitos, escritos, narrativas, músicas e outras sonoridades dos interiores.