
Concorrência nas cadeias globais de valor no setor de alimentos: uma análise do caso brasileiro*
Diogo R. Coutinho
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e pesquisador do Grupo Direito e Políticas Públicas, Brasil. Doutor e livre docente em direito pela Universidade de São Paulo, Brasil. ORCID: 0000-0001-7810-1459.
Beatriz Kira
Pesquisadora de pós-doutorado na University College London (UCL), Reino Unido. Doutora em Direito Econômico pela Universidade de São Paulo, Brasil. ORCID: 0000-0002-7078-8193.
Carolina Saito
Coordenadora-Geral de Análise Antitruste do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), Brasil. Mestra em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Brasil. ORCID: 0009-0006-5777-2249.
Luiza Kharmandayan
Pesquisadora do Grupo Direito e Políticas Públicas, Brasil. Mestre em Direito Econômico pela Universidade de Brasília (UnB), Brasil. ORCID: 0009-0001-8803-6475.
Recebido: 20 de novembro de 2022 | Aceito: 15 de julho de 2023
Como citar: Coutinho, Diogo, Beatriz Kira, Carolina Saito y Luiza Kharmandayan “Concorrência nas cadeias globais de valor no setor de alimentos: uma análise do caso brasileiro”. Latin American Law Review n.º 11 (2023): 1-19, doi https://doi.org/10.29263/lar11.2023.01
Resumo
O artigo examina a relação entre a efetivação de direitos econômicos e sociais e a regulação dos mercados a partir do direito da concorrência e de suas funções na efetivação do direito à alimentação no Brasil. Considerando o papel constitutivo do direito na economia política e em suas instituições, examinamos como a defesa da concorrência desempenha as funções de catalisar ou de limitar as atividades econômicas a partir de uma pesquisa de jurisprudência sobre a atuação da autoridade brasileira de defesa da concorrência no setor de alimentos. Verifica-se que há, no caso brasileiro, falta de reconhecimento mais explícito da defesa da concorrência como uma ferramenta de regulação econômica e social, bem como se revela ausente uma discussão mais detida sobre os padrões de concorrência típicos do setor de alimentos, especialmente das cadeias globais de valor. Argumenta-se que a análise antitruste seja estrutural, identificando os elos e relações econômicas na cadeia de valor dos alimentos, bem como seu impacto em preços e outras variáveis-chave, para além de foco em mercados relevantes e sobreposições horizontais e verticais.
Palavras-chave
Direito da concorrência, direito à alimentação, Brasil, cadeias globais de valor.
Competencia en cadenas globales de valor en el sector de alimentos: un análisis del caso brasileño
Resumen
El artículo examina la relación entre la realización de los derechos económicos y sociales y la regulación de los mercados basada en el derecho de la competencia y sus funciones en la realización del derecho a la alimentación en Brasil. Considerando el papel constitutivo del derecho en la economía política y sus instituciones, examinamos cómo la defensa de la competencia cumple funciones de facilitación o restricción de las actividades económicas, a partir de investigaciones jurisprudenciales sobre la actuación de la autoridad brasileña de defensa de la competencia en el sector de alimentos. Se verifica que, en el caso brasileño, existe la necesidad de un reconocimiento más explícito de la defensa de la competencia como herramienta de regulación económica y social, así como una discusión más detallada sobre los patrones típicos de competencia en el sector de alimentos, especialmente en las cadenas globales de valor. Se argumenta que el análisis antimonopolio sea más estructural, identificando los vínculos y las relaciones económicas en la cadena de valor de los alimentos, así como su impacto en los precios y otras variables clave, además de centrarse en los mercados relevantes y las superposiciones horizontales.
Palabras clave
Derecho de la competencia, derecho a la alimentación, Brasil, cadenas globales de valor.
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Introdução
Sistemas alimentares, estruturas econômicas tão essenciais quanto complexas, suscitam desafios importantes para a defesa da concorrência no capitalismo contemporâneo. Em 2003, a Constituição Brasileira passou a incluir em seu artigo 6º, dentre o rol de direitos sociais, o direito à alimentação. Criou, com isso, a obrigação do Estado de implementar tal direito por meio de ações governamentais. A defesa da concorrência também está prevista na Constituição, como um princípio da ordem econômica estabelecido no artigo 170, IV. Apesar de esses direitos constarem do texto constitucional, à luz das imbricações entre políticas públicas, a relação entre eles não é dada, nem óbvia, permanecendo subexplorada tanto na literatura, quanto na prática das decisões administrativas e judiciais. Esse distanciamento prático e teórico, ao menos em parte, pode ser atribuído a uma forma de compreender, ensinar e aplicar o direito que enxerga, de forma um tanto artificial, uma clivagem entre direitos políticos e sociais, de um lado, e o campo do direito econômico, incluindo o antitruste, do outro.1 Essa visão fragmentária obscurece a relação entre a efetivação de direitos econômicos e sociais e as regras que regulam os mercados e agentes econômicos e, com isso, mitiga o potencial de interação sinergética entre essas abordagens (perspectiva teórica) e políticas públicas (perspectiva prática).
Do ângulo do direito à alimentação, as regras que disciplinam as atividades dos agentes econômicos atuando em diversos elos da cadeia de produção e distribuição são determinantes da forma pela qual brasileiros e brasileiras têm acesso à comida, incluindo aspectos como preço e qualidade dos produtos que chegam às mesas das famílias. Nesse sentido, este trabalho busca iluminar essa relação por meio da lente do direito antitruste brasileiro e das funções por ele desempenhadas na efetivação do direito à alimentação.2
Para tanto, é necessário revisitar o próprio direito antitruste e refletir acerca de seus objetivos e funções em um estado democrático de direito. Quanto a isso, uma nova agenda de pesquisa tem ganhado corpo no direito antitruste ao longo da última década, fornecendo argumentos para que autoridades de defesa da concorrência assumam um papel ativo e consciente na promoção de um conjunto mais amplo de objetivos, indo além do estímulo à competição, inovação e produtividade para também fomentar promoção de economias mais justas e sustentáveis, bem como desenvolver indústrias domésticas mais estruturadas e resilientes em relação à competitividade internacional.3 Contra um pano de fundo de digitalização da economia4 e crescentes preocupações com a emergência climática,5 segurança alimentar6 e recuperação econômica após a pandemia de Covid-19,7 dentre outros temas, tais argumentos já estão influenciando e moldando o desenvolvimento de novas leis e políticas de concorrência.
Nesse contexto, como aponta Lianos, as autoridades de defesa da concorrência estão começando a lidar com objetivos de desenvolvimento sustentável – que incluem não exclusivamente a agenda de proteção ao meio ambiente e mudanças climáticas, como também questões sociais, como a precariedade de trabalhadores de plataforma na chamada “gig economy”.8 Tais desafios têm levado à adoção de uma abordagem distinta do cânone em relação à interpretação das regras de defesa da concorrência, ao mesmo tempo em que legisladores e formuladores de políticas discutem novas molduras regulatórias. Como resultado, essa nova agenda política e de pesquisa acadêmica tem levado também a um reconhecimento mais explícito da defesa da concorrência como uma ferramenta de regulação econômica e social.9 O presente artigo contribui para essa agenda de pesquisa, fornecendo subsídios para o aprimoramento da política de defesa da concorrência no Brasil e examinando a sua relação com o direito à alimentação, adotando um olhar mais específico sobre a supervisão das cadeias de valor que estruturam a produção e distribuição de alimentos.
O texto é estruturado em quatro seções. Além desta introdução, na segunda parte, apresentamos uma discussão sobre o papel do direito antitruste – e da política de defesa da concorrência, de forma mais ampla – na regulação e no próprio desenho de mercados, a partir de uma discussão da literatura internacional recente acerca dos objetivos e dos métodos de análise antitruste. Em seguida, examinamos como tais debates se traduzem no contexto de economia política do Brasil, apresentando as raízes jurídicas e econômicas da política de defesa da concorrência no Brasil e mostrando que o direito antitruste é constitucionalizado e parte da ordem econômica constitucional. Examinamos como a defesa da concorrência se relaciona com o arranjo constitucional, incluindo direitos econômicos e sociais, com especial atenção ao direito à alimentação previsto na Constituição Brasileira de 1988. Por fim, investigamos como tais dispositivos constitucionais se traduziram na lei antitruste e, concretamente, na atuação da autoridade antitruste brasileira, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).
Na terceira parte, utilizando uma lente de direito e economia política, o trabalho busca investigar o modo como a defesa da concorrência em sua interação com o direito à alimentação exige olhar atento às funções desempenhadas pelo direito de forma ampla, em sua função de facilitação (enabling) ou de restrição (restrictive) das atividades econômicas. Há um esforço de se reconhecer o papel constitutivo desempenhado pelo direito na economia política; isso é, na relação entre estados e mercados.10 Para tanto, apresentamos uma análise da estruturação jurídica das cadeias globais de valor no setor de alimentos – um exemplo no qual o encontro entre dois campos pode ser observado –, com o objetivo de identificar as diferentes funções desempenhadas pelo direito ao longo dos elos dessas cadeias. Nessa parte, serão feitas referências a casos do CADE para ilustrar como o recurso constante a parâmetros neoclássicos no setor de alimentos deixa de avaliar questões relevantes específicas desse setor e, consequentemente, não considera o papel desempenhado pelas cadeias globais de valor, estruturas empresarias-chave no capitalismo contemporâneo tão presentes nos mercados globais de alimentos.
Por fim, na quarta parte, apresentamos a conclusão do artigo. Nosso argumento é que a política de defesa da concorrência brasileira poderá ser aprimorada se o CADE adotar uma abordagem de análise mais integrada ao texto da Constituição e aos direitos econômicos e sociais nela cristalizados, incluindo o direito à alimentação. Vale dizer: o desacoplamento entre a defesa da concorrência e o arcabouço constitucional pode ser visto como um problema tanto para o antitruste, como para a realização dos direitos socioeconômicos que estão na Constituição. Com base nos casos decididos e na literatura crítica do direito e economia política, argumentamos, ainda, que a análise do CADE pode adquirir feições mais estruturais, a ponto de identificar com clareza quais são os elos das cadeias de valor de alimentos envolvidas nos setores alimentares e seu impacto nos demais elos de tais estruturas. Para tanto, sustentamos que a análise do CADE pode ser adensada, com ganhos, por um pano de fundo de economia política, que tornaria a sua análise mais apurada e nuançada, bem como mais atenta às particularidades da indústria alimentícia tal como estruturada do ponto de vista global.
As raízes constitucionais do antitruste no Brasil
Tanto a defesa da concorrência, como o direito à alimentação integram a Constituição Federal brasileira, criando também obrigações para que o Estado implemente e dê efetividade a tais direitos. Para situar nosso argumento teórico – segundo o qual a regulação dos mercados de alimentos, por meio da política antitruste, desempenha um importante papel na efetivação do direito à alimentação – cabe uma breve contextualização das origens, funções e objetivos do direito da concorrência. Tal contextualização é importante também para a moldura teórica que reconhece o “entrelaçamento de fatores econômicos, políticos e jurídicos na institucionalização do sistema capitalista moderno, na explicação de suas diferentes variedades nacionais ou regionais e na explicação de seu desenvolvimento ao longo do tempo.”11
Na caixa de ferramentas do direito econômico, o direito da concorrência é considerado uma poderosa ferramenta regulatória para governar o funcionamento e a estrutura dos mercados. Tradicionalmente, o direito da concorrência se desenvolveu para abarcar tanto as regras que regulam o comportamento dos atores do mercado – incluindo conluios e cartéis –, como regras que supervisionam a estrutura do mercado, com ênfase nas fusões e aquisições que podem afetar a concorrência dos mercados. Enquanto as regras sobre comportamento anticoncorrencial visam restabelecer o funcionamento da concorrência de um mercado, proibindo certas condutas por parte de empresas que, sozinhas ou agindo em conjunto, teriam a capacidade de exercer poder de mercado de forma abusiva, as regras relativas a atos de concentração visam garantir que a concorrência continuará existindo nesses mercados, impedindo ou adaptando arranjos que levem agentes a ter incentivos e a possibilidade de efetivamente diminuir a concorrência, por meio do exercício abusivo do seu poder de mercado.
Em linhas gerais, portanto, a defesa da concorrência visa fomentar mercados competitivos. Embora este seja geralmente reconhecido como um objetivo central do antitruste, o significado exato do termo “competitivo” permanece controverso. Além disso, há visões divergentes acerca do que, especificamente, a busca de tal objetivo implica. A literatura antitruste não fornece uma única definição, direta ou conclusiva, sobre os fundamentos teóricos do direito da concorrência, ficando esta disputa relacionada a um debate mais amplo e permanente em torno do próprio objetivo do antitruste e de quais são as melhores formas de alcançá-lo.12 A tarefa de articular um objetivo único para o direito concorrencial recebe, ademais, uma camada extra de complexidade quando o cenário global é levado em consideração, pois os objetivos concretos da defesa da concorrência como política pública variaram entre diferentes jurisdições e ao longo do tempo.
Mas como essa discussão acerca dos objetivos do antitruste se relaciona com o direito à alimentação, ou mais especificamente, com as cadeias globais de valor? Como já mencionado, em anos recentes, tem tomado corpo uma nova corrente crítica, que busca desconstruir pressupostos teóricos e metodológicos da Escola de Chicago.13 Wu, por exemplo, argumenta que, guiado pela influência da Escola de Chicago, a premissa de que o direito da concorrência deveria se concentrar em padrões de bem-estar do consumidor “descartou em demasia o papel que o direito pretendia desempenhar em uma democracia, ou seja, restringir o acúmulo de poder econômico e preservar a liberdade econômica.”14 Tal visão, embebida de pressupostos problematizantes de economia política, é compartilhada por acadêmicos associados à corrente crítica conhecida como “direito e economia política” (law and political economy ou LPE na sigla em inglês) que argumentam, entre outras coisas, que os objetivos do direito da concorrência devem ser reorientados e vinculados a reivindicações de justiça econômica e concentração de poder econômico.15 De uma perspectiva de direito e economia política, é necessário refletir acerca das funções desempenhadas pelo direito da concorrência como facilitador ou obstáculo na constituição e no desenho de mercados, bem como compreender como inflexões no contexto político e social são incorporadas pelo direito e moldam relações jurídicas.
No Brasil, a evolução da defesa da concorrência ocorreu intrinsecamente ligada a transformações no cenário político e econômico.16 As constituições brasileiras da Era Vargas (1934 e 1937) adotaram medidas para proteger a concorrência e reprimir abusos de poder econômico, incorporadas posteriormente à legislação antitruste, incluindo o Decreto-Lei 869/1938, considerado a primeira lei antitruste brasileira. A subsequente Constituição de 1946 estabeleceu que a lei reprimiria qualquer forma de abuso do poder econômico que visava a dominar os mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar lucros arbitrariamente. Foi sob a égide desse texto constitucional que, em 1962, o Brasil implementou uma nova lei antitruste (Lei 4137/1962), criando o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Essa lei, alinhada ao contexto do Estado Desenvolvimentista, enfatizava o papel do Estado como regulador do poder econômico.
De fato, é possível dizer que o direito antitruste evoluiu como uma importante ferramenta jurídica de efetivação de direitos políticos e sociais. A Constituição de 1988, seguiu o mesmo padrão. Promulgado após mais de décadas de ditadura militar, o novo texto constitucional incorporou uma série de direitos e garantias fundamentais, ao mesmo tempo em que buscou reestruturar a relação entre Estado e mercado, promovendo a concorrência e atraindo investimentos privados, em linha com outros governos latino-americanos.17 O desenvolvimento da política de concorrência no Brasil durante a década de 1990 ocorreu sob a égide da constitucionalização de direitos, mas também acompanhando a agenda de liberalização econômica do período, voltada à busca por equilíbrio fiscal e eficiência.
A Constituição de 1988 se refere explicitamente à concorrência duas vezes: primeiro como princípio da ordem econômica (art. 170) e depois ao autorizar a lei a prescrever abuso de poder econômico que poderia levar à eliminação da concorrência (art. 173, §4º).18 Como consequência, não só a interpretação e aplicação do direito da concorrência devem ser orientadas e condicionadas pelos princípios da ordem econômica e dos direitos fundamentais, como também há espaço para a adoção de instrumentos de política econômica inovadores e complementares, que atuem em conjunto ao direito da concorrência. Não por outra razão, acadêmicos e operadores do direito brasileiros têm discutido o papel e os objetivos do direito antitruste, buscando traduzir algumas das ideias da literatura internacional para o contexto jurídico e de economia política brasileiros. Frazão, por exemplo, defende que apesar de critérios econômicos serem importantes de uma perspectiva pragmática e consequencialista, não podem ser considerados parâmetros únicos quando se trata da regulação dos mercados, pois os contornos e limites do direito antitruste encontram-se na Constituição brasileira de 1988.19 De forma semelhante, Schuartz identificou o processo de “desconstitucionalização metodológica” do direito concorrencial brasileiro, pelo qual os processos decisórios e a aplicação da lei no Brasil têm sido impermeáveis a argumentos substantivos de natureza constitucional.20 Segundo Schuartz, o distanciamento entre os fundamentos constitucionais do direito concorrencial e a prática antitruste no Brasil se deve à aplicação generalizada e acrítica dos pressupostos da Escola de Chicago, que restringiam o escopo do antitruste à busca da eficiência econômica.21
Como instrumento de regulação dos mercados, o regime estabelecido para prevenir o abuso de poder econômico está também sujeito aos princípios da ordem econômica. Tais princípios devem nortear qualquer intervenção no mercado e legitimar o papel do Estado na regulação da economia à luz de considerações de economia política. Em outras palavras, com base no texto constitucional, a adoção de qualquer regime baseado na livre iniciativa e na livre concorrência deve também ter em seus fundamentos a proteção do consumidor, a redução das desigualdades sociais e econômicas, bem como o tratamento favorável aos pequenos negócios estabelecidos no Brasil. Além disso, devido à estrutura do artigo 170, a ordem econômica está necessariamente submetida à busca da justiça social.
Em suma, a consideração da dimensão constitucional da defesa da concorrência exige entender que a ordem econômica não é um fim em si mesma: ela está intimamente ligada à realização do amplo conjunto de direitos econômicos e sociais, incluindo, por exemplo, a proteção da privacidade, a proteção do consumidor e a proteção do meio ambiente. A Constituição Federal brasileira é também uma declaração de direitos.22 Isso significa que, do ponto de vista constitucional, a ordem econômica faz parte de um arcabouço jurídico mais amplo, que inclui também direitos consagrados em outros capítulos da constituição, incluindo o direito à alimentação – previsto no artigo 6º da CF 1988 por meio da Emenda Constitucional 64/2010.23 Portanto, qualquer discussão jurídica acerca das funções do direito da concorrência deve necessariamente situar tal direito como parte constitutiva de uma ampla rede de relações jurídicas – direitos e obrigações – estabelecida pela Constituição Federal, da qual o direito à alimentação também faz parte.
Direito da concorrência, direito à alimentação e as cadeias globais de valor
A compreensão da defesa da concorrência pelos ditames constitucionais e pela lente da economia política leva-nos a considerar que os setores de alimentos não devem ser analisados de forma abstrata e restrita pelas autoridades antitruste, como vem acontecendo nas análises por parte do CADE no setor de alimentos.24 A autoridade antitruste brasileira tem atuado de forma tímida e pontual nas operações que afetam esse setor, a despeito das características potencialmente sensíveis – por exemplo, alto nível de verticalização e significativa concentração em alguns elos da cadeia contraposta à dispersão dos agentes econômicos em outros elos e relação direta e imediata com o direito à alimentação. Da mesma forma, a análise dos processos administrativos que investigam condutas anticompetitivas revela que o CADE tende a não incorporar em sua análise características estruturais e econômicas próprias do segmento de produção de alimentos. O foco da autoridade é a verificação da materialidade dos fatos, principalmente em decorrência da predominância de investigações de cartel, conduta que é analisada pelo CADE como um ilícito per se.25 Mesmo nos casos de condutas unilaterais ou verticais, em que a análise da autoridade antitruste brasileira é baseada na regra da razão, verifica-se que o CADE dá bastante destaque na comprovação da conduta em si. Esse enfoque pode ser visto no processo administrativo da Kibon,26 no qual, apesar de verificar o poder de mercado e os efeitos decorrentes da conduta, o CADE discutiu bastante se haveria uma exclusividade de fato, dedicando grande parte da análise às provas dos autos. Em ambos os tipos de processos, verifica-se que o CADE acaba utilizando instrumentos desenhados principalmente com base na teoria econômica neoclássica, sem ponderar outros aspectos que são relevantes para a dinâmica competitiva no setor de alimentos.
Uma análise antitruste enraizada na Constituição Federal e moldada pelo contexto político e econômico deve considerar que esses setores estão radicados em relações sociais e econômicas que extrapolam a relação entre produtores varejistas e consumidores. Invariavelmente, a formação de preços dos produtos finais da cadeia de alimentos ocorre de forma complexa em diversos elos de uma cadeia de valor que nem sempre são considerados pelas autoridades antitruste27, conforme exemplos do CADE apresentados neste artigo. Por essa razão, argumentamos que cadeias globais de valor (global value chains, ou GVC) são chave para a correta análise antitruste em casos envolvendo setores de alimentos. Em outras palavras, por incorporarem relações econômicas e políticas que são mediadas e moldadas pelo direito, as cadeias globais de valor se apresentam como um instrumento para analisar concretamente as funções desempenhadas pelo direito da concorrência na produção e distribuição de alimentos e devem, portanto, integrar o conjunto de ferramentas analíticas do antitruste.
Como causa e ao mesmo tempo resultado da globalização, as chamadas cadeias globais de valor se tornaram um componente ativo e central do capitalismo contemporâneo.28 Com atuação crescente nas últimas décadas e presença em quase todos os países de distintos graus de desenvolvimento, as GVC abarcam um conjunto amplo de atividades econômicas – concepção, produção, marketing, distribuição e suporte ao consumidor final – que se articulam e coordenam na forma de uma estrutura vertical, encadeada por elos, para ofertar produtos e serviços.29 A produção é internacional e compartilhada por múltiplas corporações (muitas delas empresas transnacionais) e trabalhadores, com tarefas executadas em diferentes países.30 Os laços que unem tais empresas são societários e contratuais, com ampla variedade de formas jurídicas e de governança corporativa. Cadeias de valor têm não apenas se tornado cada vez mais globais em termos de presença em diversas regiões do planeta, como também maiores em porte, renda e mais centrais no comércio internacional.31
O setor de alimentos e a agricultura também vêm sendo progressivamente organizados sob a forma de GVC nas últimas décadas, sendo que diferentes estágios do processo de transformação de matéria-prima em produtos estão alocados em diferentes países. O setor agrícola está ligado às GVC como um ofertante de alimentos, tecidos e combustíveis nos elos mais elevados da cadeia (a montante), enquanto o setor de alimentos se situa mais abaixo (a jusante) em tais estruturas, em geral como um usuário de materiais e produtos agrícolas. O montante de valor agregado de alimentos e produtos agrícolas mobilizado por GVC para a exportação por parte de países estrangeiros mais do que duplicou no planeta, em termos nominais, entre 2004 e 2014.32 As GVC dos setores agrícola e de alimentos têm, nesse processo, se tornado cada vez mais concentradas e dotadas de poderio econômico, com o consequente incremento do seu poder de barganha e compra.33
Veja-se a seguinte composição da cadeia de valor de alimentos composta por sete elos:

Fonte: Lianos et al (2017), p. 39 (tradução própria)
As GVC são heterogêneas em relação à sua própria constituição: seus elos, apesar de interdependentes, são autônomos e assimétricos no que diz respeito ao seu tamanho e, consequentemente, sua capacidade de negociação e barganha. Produtores agrícolas, intermediários e comercializadores, processadores, varejistas e, na ponta final, consumidores têm, por isso, importâncias relativas distintas nas relações comerciais e na economia política que se estabelecem no interior das GVC, assim como nas relações destas com outros agentes econômicos. No interior das GVC, as assimetrias estão ligadas sobretudo ao elevado e desproporcional poder de compra dos compradores de commodities, dos processadores de comida e dos varejistas. Esse poder de barganha tende a pressionar para baixo os preços praticados por produtores situados na ponta final da cadeia, impondo-lhes perdas de renda, o que leva, por sua vez, a prejuízos e perdas para os trabalhadores, assim como a danos e agressões ao meio ambiente. Se, por um lado, essa “pressão para baixo” leva produtores menos eficientes a fusões, cortes de custos (ou simplesmente a sair do mercado), por outro lado, o poder de barganha por parte das GVC pode permitir abusos e práticas comerciais danosas e lesivas. Os custos sociais envolvidos na atuação das GVC conduzem a uma discussão sobre o critério de eficiência adotado nas análises econômicas convencionais destinadas a avaliar sua atuação. Como aponta Schutter, a questão subjacente é: em que medida a lógica da eficiência pode ser aplicada sem quaisquer ponderações e sem qualquer distinção quanto aos agentes e países envolvidos?34
No caso brasileiro, a atuação das cadeias globais de valor sob a ótica do direito da concorrência também tem relação com a previsão constitucional do direito à alimentação. Se é correta a premissa de que o direito da concorrência não apenas pode como também deve ser interpretado e aplicado à luz de uma interpretação sistemática da Constituição, como seria possível compatibilizar o antitruste com o objetivo de realizar ou efetivar o direito à alimentação? Em que medida tal esforço pode ser empreendido sem que o rigor analítico do ferramental da defesa da concorrência seja perdido ou sacrificado?
A construção de respostas para tais perguntas evidentemente não é simples. Ela passa, no entanto, pela compreensão de que as GVC devem ser em sua atuação compreendidas à luz das relações de poder – político e econômico – que as marcam e movem. Se GVC afetam diretamente territórios e agentes econômicos desproporcionalmente e, ademais, impactam preços e rendas de cidadãos (em especial os mais pobres), não é difícil enxergar que o modo como tais estruturas são reguladas nos planos internacional e doméstico tem relação estreita com o direito à alimentação. Dito de outro modo, mercados globais influenciam o plano doméstico e as estratégias de desenvolvimento nacionais. Em países onde a fome e a insegurança alimentar são dados da realidade, o direito à alimentação com mais razão deve levar em conta o papel das GVC, tanto quanto a aplicação do direito da concorrência deve fazê-lo.
Tal convergência, nada trivial, se constitui como um desafio teórico e prático de grande importância. Como pontua Schutter, “em países onde a insegurança alimentar é espraiada em áreas rurais e onde há violações ao direito de alimentação adequada de pequenos produtores, o controle concorrencial do poder de compra [das GVC] deve ser mais do que uma nuance ou uma exceção à regra; ele deveria ser parte integral do regime concorrencial”. O antitruste deve ser “aperfeiçoado para se compor com princípios gerais de igualdade e não discriminação dos direitos humanos”, bem como para realizar os direitos à alimentação, trabalho e desenvolvimento”.35 O direito da concorrência é um instrumento para controlar o poder econômico e, nos setores de alimentos, ele deve considerar a existência dessas diversas formas de poder que existem na cadeia de valor de alimentos, afirma. Na próxima seção, argumentamos que um passo importante no sentido de tornar mais estrutural (e com isso rica e mais integrada à Constituição) a análise concorrencial, é levar em consideração os elementos que caracterizam as cadeias de valor de alimentos, de modo a refinar a aplicação do direito da concorrência e, com isso, aproximar a política antitruste do direito à alimentação.
A abordagem da GVC na aplicação da política antitruste em setores de alimentos
Como dito acima, a indústria de alimentos não deve ser analisada fora do contexto das relações sociais em que está inserida e enraizada. A abordagem das GVC dá conta de captar de forma mais ampla e nítida como os atores econômicos mantêm sua posição na cadeia de valor e, ainda, como conquistam posições e ganham poder, ao passar de atividades de baixo valor para atividades de valor mais elevado, ou ainda como podem ocorrer relações na direção contrária.36 Diferentemente do que apregoa a teoria neoclássica de preços tradicionalmente utilizada por autoridades antitruste – destacando-se a discussão sobre economia de custos de transação –, considerar o papel das GVC leva a uma análise mais clara sobre as relações verticais entre os diversos atores, permitindo compreender como e se os atores com maior poder podem capturar valor do restante da cadeia. Essa visão enfatiza a distribuição do valor gerado ao longo dessas estruturas econômicas e não a maximização do excedente de produção em uma análise de eficiência.
A abordagem GVC retira o foco das questões de poder de mercado horizontal e, com isso, pode evitar que sejam analisados individualmente cada segmento da cadeia em favor da consideração, de forma ampla, dos impactos que são gerados na GVC como um todo. Isso permite que se compreenda como ocorre a alocação do excedente total gerado pela cooperação entre atores econômicos independentes na medida em que isso possa ter efeitos no aumento da produtividade e no desempenho dos diversos segmentos da cadeia de valor.37 Apesar dessa importante constatação, a atuação do CADE em relação a condutas anticompetitivas no setor de alimentos é majoritariamente focada em cartéis, representando 81% dos casos analisados. Em relação aos atos de concentração, verifica-se uma predominância das análises horizontais, tendo em vista que 31,91% das operações analisadas diziam respeito apenas a concentrações horizontais e 55,32% dos casos impactaram tanto relações verticais quanto horizontais. Vale destacar que, além dessas avaliações quantitativas, como veremos nos exemplos abaixo, qualitativamente não há uma avaliação robusta por parte do CADE sobre os impactos das condutas e operações ao longo da cadeia de valores dos setores de alimentos.
Como os elos da cadeia de valor de alimentos interagem intensivamente, algo que afete um deles repercute de forma significativa em outros, exigindo uma análise holística da GVC. Essa perspectiva gera uma dinâmica distributiva e pode ser particularmente útil para revisitar a forma como o direito da concorrência lida com integrações verticais. Tradicionalmente, a relação entre os diferentes níveis de uma cadeia é vista como complementar na análise antitruste, ocorrendo uma intervenção apenas quando é identificado um considerável poder de mercado em um dos segmentos que possa levar ao fechamento de mercado e aumento de custos de seus rivais upstream ou downstream. Essa abordagem tende a ignorar a alocação das receitas geradas pelos diversos agentes que atuam ao longo da cadeia, o que Lianos et al38 chama de “concorrência vertical”39.
Quanto à preocupação com a concorrência vertical e a visão holística das cadeias de valor no setor de alimentos, verificou-se que, em relação às condutas unilaterais e verticais analisadas nos setores de alimentos, o CADE enfoca a verificação de participação de mercado das partes apenas nos mercados relevantes afetados pela conduta, avaliando a detenção de poder de mercado e aferição de se as condutas ocorreram e poderiam gerar efeitos anticompetitivos unicamente nesses mercados. Não há qualquer avaliação da cadeia de valores envolvida como um todo ou como outros elos dessa cadeia, além dos mercados relevantes afetados, poderiam ser impactados pela conduta anticompetitiva.
Em relação aos atos de concentração, apesar de o CADE mencionar a cadeia produtiva e questões setoriais ao examinar alguns dos casos do setor de alimentos, como regra, essa explanação mais abrangente se volta a contextualizar a operação, descrevendo o abastecimento e escoamento dos produtos que são alvo da operação.
Exemplos dessa abordagem da autoridade antitruste brasileira são as operações no setor de fertilizantes.40 Nesses casos, apesar de apresentar uma estrutura da cadeia de produção de fertilizantes, o CADE prefere analisar os produtos em que há sobreposição entre as atividades das partes. Ademais, apesar de analisar as integrações verticais, não há qualquer consideração ou análise sobre a cadeia de valor de alimentos que os fertilizantes integram ou como os produtos das partes impactam na formação de preços dos produtos dessa cadeia. Em nenhum momento há uma ponderação sobre como a operação poderia impactar na captura de valor ao longo da cadeia, ou sobre as formas de poder que existem e podem ser afetadas pela operação ao longo de seus elos. Ponderações sobre assimetria do poder de barganha aparecem de maneira incidental em alguns desses casos de fertilizantes,41 indicando que o foco da análise do CADE reside ainda no índice de concentração de mercado e no poder de mercado das empresas e não no poder relativo que elas detêm no contexto das GVC.
Outro setor em relação ao qual o CADE menciona a cadeia de produção e em relação ao qual poderia discutir melhor os impactos de uma operação na GVC é o de supermercados.42 Apesar de se saber que o setor de varejo é o último elo da cadeia de valor de alimentos antes dos consumidores e que se trata de agente formador de preços, cuja atividade impacta em toda a estrutura da cadeia de valor de alimentos, a análise do CADE não chega a analisar esses impactos. Na realidade, a análise de possibilidade de abuso de poder de mercado é embasada apenas no número de empresas que passaram a atuar no setor supermercadista – análise de entrada – e daquelas que estão no mercado – análise de pressão competitiva. Não se analisa o poder que os supermercados detêm ao longo da cadeia a que pertencem e como as operações podem impactar essa estrutura de poder e seus participantes de forma assimétrica, com prejuízos para os elos mais fracos. O poder de barganha que os supermercados têm em relação aos fornecedores e como as operações podem impactar a relação não são objeto de análise.
Essa percepção da concorrência vertical, descortinada pela abordagem das GVC, ressalta um outro desafio importante da análise antitruste: a concepção e definição do mercado relevante. Embora a forma convencional de se definir o mercado relevante seja indubitavelmente útil, ela tem se mostrado, ao mesmo tempo, limitada para setores que demandam uma captura mais completa das interações competitivas que ocorrem entre diversos atores, como é o caso do setor de alimentos. Definir a arena onde ocorrem as relações competitivas apenas com base em variáveis como a substitutibilidade entre bens e serviços traduz, então, uma visão restrita sobre como realmente ocorrem as interações competitivas no setor de alimentos, deixando de fora incentivos e estratégias que os agentes dessa cadeia adotam considerando os valores gerados na cadeia como um todo. Por essa razão, seguindo Lianos et al, o conceito de mercado relevante como regra não oferece o devido quadro analítico para avaliar o efeito das restrições da “concorrência vertical”.43 Em contrapartida, a abordagem GVC traz consigo um enfoque capaz de evidenciar disputas e efeitos distributivos, o que pode ser particularmente útil para se compreender as estratégias de negócios reais do setor de alimentos, deixando claro, ao fim e ao cabo, que agentes ao longo da cadeia lucram, e como isso impacta os demais agentes em sua inter-relação.
Sobre esse aspecto, verificou–se uma tendência de o CADE restringir sua análise a mercados relevantes definidos de forma limitada, em vez de adotar uma visão mais abrangente ou holística sobre as GVC nos casos dos setores de alimentos que foram analisados. Nos processos para verificação de prática de condutas anticompetitivas horizontais, em geral, o posicionamento do CADE é no sentido de compreender o mercado relevante com base na própria atuação dos Representados, ou seja, o comportamento das partes serve para indicar qual o mercado afetado pela conduta. Em outras palavras, o escopo do acordo anticompetitivo corresponde à definição do mercado relevante. De forma similar, a análise do CADE em relação às condutas unilaterais e verticais nos setores de alimentos é focada estritamente nos mercados relevantes afetados diretamente pela conduta. Ocorre, assim, uma definição de quais seriam os mercados envolvidos nas condutas verticais ou afetados pela conduta unilateral e esses mercados envolvidos é que pautam a análise da autoridade antitruste. Com isso, não há qualquer análise sobre outras interações competitivas que, para os setores de alimentos, são tão relevantes.
Quanto à análise de atos de concentração, cujos processos estão disponíveis no sistema de busca de jurisprudência do CADE, destacam-se novamente as operações analisadas no setor de fertilizantes,44 nos quais a análise do CADE é restrita aos mercados relevantes definidos por premissas e metodologias neoclássicas tradicionais, além de centrar nas preocupações decorrentes meramente das participações de mercado das partes, critério relevante da análise de poder de mercado. Da mesma forma, nas operações que foram analisadas no setor supermercadista,45 verificou-se uma tendência de análise bastante restrita aos mercados relevantes diretamente afetados. Nesses casos, a preocupação da autoridade brasileira na definição do mercado relevante, bem como na aferição de poder de mercado das partes, foi limitada à constatação do número de check-points dos estabelecimentos dos supermercados.
Uma outra operação no qual padrão semelhante foi observado foi no setor de exportação de açúcar.46 O CADE chega a mencionar que “a investigação relativa ao mercado de exportação de açúcar difere da investigação de um mercado tradicional, tendo em vista que a competição ocorre não só entre as empresas, mas entre as cadeias de suprimentos”. Em seguida, a autoridade passa a descrever a estrutura da cadeia de suprimentos de exportação do açúcar, que seria composta por: (i) produtor agrícola, que seria o fornecedor da matéria-prima, (ii) produtor do açúcar (usina), (iii) fornecedor de armazéns intermediários, (iv) fornecedor de transporte, (v) fornecedor de unidades de transbordo rodoferroviário, (vi) fornecedor de serviços de operações portuárias, (vii) fornecedor de serviços de fretamento de navios, (viii) intermediários na comercialização do açúcar (tradings) e (ix) clientes. Apesar dessa descrição de uma cadeia de valor, a análise do CADE não foi diferente da tradicional: foram definidos os mercados relevantes e os impactos que a operação causaria naqueles diretamente afetados, avaliando o poder de mercado das partes com base nas porcentagens de suas participações nos referidos mercados.
O mesmo padrão de análise pode ser visto nos casos relacionados aos setores de sementes de soja e algodão,47 ao setor de frangos para abate e produção de frango,48 ao setor de leite,49 setor de carne bovina,50 setor de óleo de soja51 e no setor de biscoitos e massas.52 Em todos os casos, verifica-se uma breve menção ao uso e características dos produtos, bem como uma explicação singela sobre a estrutura da cadeia produtiva. A análise do CADE, no entanto, não se aprofunda nesse ponto. Não há menções aos impactos das operações nas cadeias produtivas e nas GVC, apenas sobre os mercados relevantes em que há alguma relação vertical. Importante notar que, mesmo nesses casos, as análises não são muito sofisticadas e utilizam como métrica para medir o poder de mercado das partes apenas o percentual de participação de mercado das empresas envolvidas nas operações.
Em suma, verifica-se que, embora as decisões do CADE evidenciem consistência metodológica – eminentemente baseada nos instrumentos de análise fornecidos pela teoria econômica neoclássica –, também revelam que a autoridade tende a se restringir a alguns aspectos da operação. Pouca importância foi dada às particularidades das GVC que compõem o pano de fundo estrutural desses mercados. Com isso, a análise antitruste abriu mão também de uma análise constitucionalmente integrada que incorporasse preocupações acerca dos eventuais efeitos que o ato de concentração poderia ter sobre o direito à alimentação, uma sofisticação da análise que seria tão crucial dados os riscos e potenciais danos causados sobretudo aos consumidores mais pobres.
O caso brasileiro aqui estudado mostra, resumidamente, que o CADE analisa a indústria de alimentos como se ela não tivesse características peculiares, como se não estivesse ligada a cadeias globais de valor e como se não fosse parte de um mercado sobre o qual incide uma previsão constitucional que, por sua vez, reclama políticas públicas articuladas – em seus escopos próprios – para que seja melhor disciplinado. Isto revela que as bases teóricas estruturalistas e baseadas na análise crítica da economia política do poder econômico, que se disseminam crescentemente em outras jurisdições, não foram adotadas (ainda) no contexto nacional. Tampouco o CADE faz relações diretas entre aspectos concorrenciais nos setores ou mercados de alimentos que analisou, de um lado, e o direito à alimentação, de outro.
No entanto, no Brasil a Constituição Federal de 1988 oferece bases sólidas para a adoção de instrumentos de supervisão de mercado, instrumentos que vão além do foco estreito na eficiência econômica ou na proteção do consumidor. À luz das disposições constitucionais e de uma interpretação integrada da ordem econômica consagrada pela carta de 1988, a defesa efetiva da concorrência exige um enfoque mais atento e centrado na alocação social de bens sociais e na adequação da economia de mercado aos princípios democráticos. Nada impediria o CADE, ademais, de estabelecer um diálogo institucional com as políticas públicas governamentais voltadas ao combate à fome e à desnutrição. A implementação do direito da concorrência não deve se restringir apenas à análise formal do controle de atos de concentração ou a condutas anticoncorrenciais desde uma ótica puramente centrada em cálculos de custo-benefício. Pelo contrário, exige a consideração simultânea dos princípios que informam a ordem econômica, elencados nos incisos do artigo 170 da Constituição, combinada com uma interpretação sistemática dos direitos sociais e econômicos.
Os casos analisados mostram que o CADE passa ao largo da análise das GVC, perdendo, com isso, a oportunidade de identificar efeitos sistêmicos em seus elos, bem como de mapear consequências diretas ou indiretas de suas decisões associadas à garantia de alimentação da Constituição. Com isso, a autoridade se priva de articular o direito antitruste às políticas de alimentação saudável e combate à fome, que, vale lembrar, no atual momento pós-pandemia de Covid-19, voltou a ser mazela social no país.53 Mesmo que um exercício contrafactual – que não fizemos aqui – mostrasse que o resultado das decisões do CADE seria, ao fim e ao cabo, o mesmo se análises mais densas e detidas tivessem ocorrido, ainda sim pode-se dizer que o exercício analítico teria valor em si, eis que traduziria um esforço importante, pelo qual a autoridade antitruste se desincumbiria do ônus argumentativo de trazer a economia política das cadeias globais de valor de alimentos a seu escrutínio estrutural. Tal exercício, entendemos, contribuiria para a construção concreta – a concreção, dizem os juristas – do direito à alimentação do artigo 6º da Constituição Federal, bem como enriqueceria o debate sobre a implementação de políticas públicas (entre as quais o antitruste se enquadra) dedicadas ao seu fomento.
Bibliografía
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1 Jedediah Britton-Purdy et al., “Building a Law-and-Political-Economy Framework: Beyond the Twentieth-Century Synthesis”, Yale Law Journal 129, no. 6 (2020): 1784–1835.
2 Atualmente, busca-se ampliar o conceito de “direito à alimentação” para além da ideia de um pacote de calorias específicas que garanta o acesso e o adequado aproveitamento dos alimentos pelo corpo, considerando o elemento nutricional como central para a definição do direito à alimentação. Esse direito deve ser entendido como o “direito humano à alimentação e à nutrição adequadas” (acrônimo: Dhana). Assim, apesar de não tratar desse debate no texto, os autores destacam que, sempre que possível, a ideia de direito à alimentação deve compreender essa dimensão mais ampla de alimentação e nutrição adequadas.
3 Ver, por exemplo, Andreoni e Roberts sobre o surgimento de uma política industrial-concorrencial em países em desenvolvimento, principalmente na África do Sul. Antonio Andreoni and Simon Roberts, “Governing Data and Digital Platforms in Middle Income Countries: Regulations, Competition and Industrial Policies, with Sectoral Case Studies from South Africa” Digital Pathways Paper Series (2020).
4 Ver, por exemplo, Caio Mario da Silva Pereira Neto, ed., Defesa Da Concorrência Em Plataformas Digitais (São Paulo: FGV Direito SP, 2020), http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/30031; Beatriz Kira and Diogo R. Coutinho, “Ajustando as Lentes: Novas Teorias Do Dano Para Plataformas Digitais”, Revista de Defesa Da Concorrência 9, no. 1 (2021): 83–103, https://doi.org/10.52896/rdc.v9i1.734; Beatriz Kira, “Is IFood Starving the Market? Antitrust Enforcement in the Market for Online Food Delivery in Brazil”, World Competition 46, no. 2 (2023): 133–62, https://doi.org/10.54648/woco2023009.
5 Ver, por exemplo, Suzanne Kingston, “Competition Law in an Environmental Crisis”, Journal of European Competition Law & Practice 10, no. 9 (2019): 517–18, https://doi.org/10.1093/jeclap/lpz076.
6 Ver, por exemplo, Ioannis Lianos et al., eds., Global Food Value Chains and Competition Law, Global Competition Law and Economics Policy (Conference on the Global Food Value Chain: Competition Law and Policy at Crossroads, Cambridge, United Kingdom; New York, NY: Cambridge University Press, 2021).
7 Ver, por exemplo, Priscila Brolio Gonçalves, Diogo R. Coutinho, and Beatriz Kira, “Vírus e Telas: As Plataformas Digitais Na Pandemia Do COVID-19”, Direito e Práxis 13 no. 1 (2022): 44-68, https://doi.org/10.1590/2179-8966/2020/47690.
8 Sobre fatores reorientando a aplicação do antitruste, ver Ioannis Lianos, “Reorienting Competition Law”, Journal of Antitrust Enforcement, (2022): jnac003, https://doi.org/10.1093/jaenfo/jnac003.
9 Lianos, “Reorienting Competition Law”.
10 Sabine Frerichs, “The Choice of Paradigms in Political Economy: A Primer for Lawyers”, Verfassungsblog: On Matters Constitutional, (2020), https://doi.org/10.17176/20200902-183331-0.
11 Frerichs, “The Choice of Paradigms in Political Economy: A Primer for Lawyers”, 4.
12 Por exemplo, Fox argumenta que a controvérsia a respeito dos objetivos do antitruste é improdutiva e oculta um debate real, mais relevante, acerca de como a defesa da concorrência deve contribuir para mercados mais robustos. Eleanor M. Fox, “Against Goals”, Fordham Law Review 81 (2013): 2157–61. Hovenkamp, por sua vez, acredita que hoje há “mais consenso sobre os objetivos das leis antitruste do que em qualquer momento no último meio século,” e que poucas pessoas contestam que a missão central antitruste é proteger “o direito do consumidor aos preços baixos, à inovação e à produção diversificada que a concorrência promete”, mas que a controvérsia estaria na implementação de tais objetivos. Herbert Hovenkamp, The Antitrust Enterprise: Principle and Execution (Cambridge, MA: Harvard Univ. Press, 2008). p. 1.
13 Nos EUA, sob os auspícios da Escola de Chicago, a compreensão dos objetivos do direito da concorrência evoluiu nas últimas décadas, alçando a eficiência econômica ao primeiro plano tanto na produção acadêmica, quanto na prática. Assim, um aspecto central do antitruste comumente atribuído à Escola de Chicago é a ideia de que seu objetivo é maximizar o bem-estar do consumidor. As origens desse benchmark são frequentemente atribuídas a Robert Bork, autor de trabalhos que argumentaram que o Congresso dos EUA tinha a intenção de que os tribunais implementassem um padrão de análise visando a maximização da riqueza ou a satisfação do consumidor. Ver Robert H. Bork, “Legislative Intent and the Policy of the Sherman Act”, The Journal of Law & Economics 9 (1966): 7.
14 Tim Wu, The Curse of Bigness: Antitrust in the New Gilded Age (New York, NY: Columbia Global Reports, 2018). p. 17
15 Britton-Purdy et al., “Building a Law-and-Political-Economy Framework: Beyond the Twentieth-Century Synthesis”, 118-123.
16 Beatriz Kira, “The Politics and Economics of Brazilian Competition Law”, Latin American Law Review no. 11 (2023).
17 Kira, “The Politics and Economics of Brazilian Competition Law”.
18 Uma redação semelhante a do art. 173, §4 já estava incluída nas Constituições brasileiras de 1946, 1967 e 1969, que proibiam o abuso do poder econômico com o objetivo de “dominar os mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros”.
19 Ana Frazão, Direito Da Concorrência: Pressupostos e Perspectivas (São Paulo: Saraiva, 2017).
20 Schuartz identificou o “peculiar e notável fenômeno de impermeabilização e ‘desconstitucionalização metodológica’ do direito de defesa da concorrência brasileiro”. Luis Fernando Schuartz, “A Desconstitucionalização do Direito de Defesa da Concorrência”, FGV Direito Rio - Textos para Discussão (2008): 2.
21 Schuartz, “A Desconstitucionalização do Direito de Defesa da Concorrência”.
22 Virgílio Afonso da Silva, The Constitution of Brazil: A Contextual Analysis, Constitutional Systems of the World (Oxford, UK: Hart Publishing, 2019).
23 O reconhecimento constitucional do direito à alimentação é fruto de um processo histórico de luta para o enfrentamento da fome e representa um compromisso do Estado brasileiro de dar prioridade a esse assunto, no contexto dos demais direitos estabelecidos na Constituição Federal.
24 As autoras e o autor do artigo elaboraram pesquisa de jurisprudência para fundamentar os argumentos aqui apresentados. Para tanto, foram analisados 68 processos (47 atos de concentração não-sumários e 21 processos administrativos), selecionados na ferramenta do CADE “Busca de Jurisprudência” – que apresenta resultados de casos em que houve documentos decisórios proferidos a partir de 2012 (processos administrativos) e de 2015 (atos de concentração) –, considerando as seguintes palavras-chave: agricultura, alimento, alimentos, bebida açucarada, bebidas açucaradas, cadeia alimentar, comida, food, frigoríficos, indústria alimentar, insumo agrícola, merenda, merenda escolar, PNAE, Programa Nacional de Alimentação Escolar, quentinha, refrigerante, refrigerantes, setor alimentar, supermercado, supermercados e varejo alimentar.
25 Quando o CADE adota a regra per se, há uma redução dos passos de análise da conduta anticompetitiva, situação em que a autoridade se limita a verificar apenas a existência da conduta para concluir pela sua ilicitude (materialidade), além de confirmar a participação do agente investigado na referida conduta (autoria). As demais etapas de análise (tais como a verificação de poder de mercado, condições e características do produto/serviço investigado, questões do próprio mercado e a potencialidade de efeitos líquidos negativos) são apenas consideradas nas investigações de condutas unilaterais e verticais, em que é adotada a regra da razão.
26 Processo Administrativo no. 08012.007423/2006-27.
27 Ioannis Lianos et al., ‘Competition Law Enforcement Activity in BRICS and the Food Value Chain’, Centre for Law, Economics and Society Research Paper Series (London: University College London, 2017), 17.
28 “GVCs se tornaram um fator dominante na economia global”, mostram a OCDE, a OMC e o Banco Mundial. OECD, WTO and World Bank Group, “Global Value Chains, Challenges, Opportunities, and Implications for Policy” Report prepared for submission to the G20 Trade Ministers Meeting (2014). O crescimento acelerado das GVC, sobretudo desde os anos 2000, tem sido registrado em diversos estudos. Sobre as GVC como parte constitutiva da economia global (“business as usual”) e, ao mesmo tempo, como elemento disruptivo do capitalismo (“a new normal”), ‘The Future of Global Value Chains: Business as Usual or “a New Normal”?’, OECD Science, Technology and Industry Policy Papers, vol. 41, OECD Science, Technology and Industry Policy Papers, 11 July 2017, https://doi.org/10.1787/d8da8760-en.
29 Sobre a origem do termo global value chains (e global commodity chain) cf., por exemplo, Koen De Backer and Sébastien Miroudot, “Mapping Global Value Chains” Working Paper Series European Central Bank (2014).
30 A UNIDO já estimou que GVC governadas por empresas transnacionais correspondem a 80% do comércio global a cada ano Adnan Seric and Yee Siong Tong, ‘What Are Global Value Chains and Why Do They Matter?’, UNIDO - Industrial Analytics Platform (blog) (2019), https://iap.unido.org/articles/what-are-global-value-chains-and-why-do-they-matter.
31 OECD, WTO and World Bank Group, “Global Value Chains, Challenges, Opportunities, and Implications for Policy”, 7.
32 OECD, Global Value Chains in Agriculture and Food: A Synthesis of OECD Analysis, OECD Food, Agriculture and Fisheries Papers, vol. 139, OECD Food, Agriculture and Fisheries Papers, 4 February 2020, https://doi.org/10.1787/6e3993fa-en. p. 4.
33 Oliver de Schutter, “Addressing Concentration in Food Supply Chains. The Role of Competition Law in Tackling the Abuse of Buyer Power” Special Rapporteur on the right to food (2010): 2.
34 Schutter, “Addressing Concentration in Food Supply Chains. The Role of Competition Law in Tackling the Abuse of Buyer Power”.
35 Ibid., 4.
36 Ioannis Lianos et al., ‘Competition Law Enforcement Activity in BRICS and the Food Value Chain’, 34.
37 Ibid., 32-34.
38 Ibid., 52.
39 Ibid., 18.
40 Atos de Concentração nos. 08700.001145/2017-07, 08700.000393/2018-11, 08700.002024/2020-70.
41 Ato de Concentração no. 08700.002024/2020-70.
42 Ato de Concentração no. 08700.005364/2019-19.
43 Ioannis Lianos et al., ‘Competition Law Enforcement Activity in BRICS and the Food Value Chain’, 52.
44 Atos de Concentração nos. 08700.001145/2017-07, 08700.000393/2018-11, 08700.002024/2020-70.
45 Ato de Concentração no. 08700.005364/2019-19.
46 Ato de Concentração no. 08700.011517/2015-33.
47 Ato de Concentração no. 08700.001097/2017-49.
48 Atos de Concentração nos. 08700.002227/2020-66 e 08700.004702/2019-03.
49 Ato de Concentração no. 08700.,004363/2019-57.
50 Ato de Concentração no. 08700.007553/2016-83.
51 Ato de Concentração no. 08700.002605/2020-10.
52 Ato de Concentração no. 08700.000782/2018-39.
53 Em 2022, o Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil apontou que 33,1 milhões de pessoas não têm garantido o que comer. Conforme o estudo, mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau: leve, moderado ou grave. Fonte: https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/10/retorno-do-brasil-ao-mapa-da-fome-da-onu-preocupa-senadores-e-estudiosos (acesso em 9 de agosto de 2023).