
Escolas agroecológicas interculturais: um espaço de diálogo para desenvolver um sistema de produção alimentar sustentável para o campo mesoamericano*
René Cristóbal Crocker Sagastume**
Universidad de Guadalajara (Jalisco, México)
Naturaleza y Sociedad. Desafíos Medioambientales • número 13 • septiembre-diciembre 2025 • pp. 87-116
https://doi.org/10.53010/nys7.03
Recebido: 30 de maio de 2023 | Aceito: 24 de outubro de 2023
Resumo. Neste artigo, analisa-se uma experiência educativa intercultural que envolveu o povo maia do norte da Guatemala, o povo wixárika do oeste do México, camponeses mestiços da região mesoamericana, pesquisadores e estudantes da área da saúde, com o objetivo de gerar uma proposta de política pública para a produção de alimentos sustentáveis no campo, seguindo o modelo das escolas agroecológicas interculturais. É aplicada uma metodologia de etnografia participante para recuperar a experiência dos informantes dos dois povos indígenas acima mencionados, que é depois socializada em oficinas de diálogo intercultural com camponeses e estudantes universitários. A pesquisa permitiu recuperar a cosmovisão dos povos indígenas cuja vida está ligada à Mãe Terra, por meio de rituais oferecidos aos deuses e que visam favorecer a produção do sistema coamil (elemento central da dieta milpa), em que milho, feijão, abóbora e pimentão são semeados de forma ecológica, com a adição de legumes e frutas da região. A partir do diálogo, os atores interculturais formulam uma proposta de segurança alimentar que inclui o sistema coamil, a criação de animais de quintal, a produção de adubos orgânicos, os controladores biológicos de pragas, o cultivo de hortaliças e frutas, bem como a gestão sustentável da água. Conclui-se que as escolas agrícolas agroecológicas interculturais constituem um espaço formativo para a consciencialização do papel desempenhado pela cosmovisão dos povos indígenas. Da mesma forma, o exercício de combinar essa cosmovisão com o conhecimento agroecológico dos camponeses da região mesoamericana fornece elementos para a formulação de uma política pública que busca alcançar a segurança alimentar da produção de alimentos nas comunidades camponesas e indígenas do campo mesoamericano.
Palavras-chave: agroecologia, educação, interculturalidade, segurança alimentar, povos indígenas.
Granjas escuelas agroecológicas interculturales: espacio de diálogo para desarrollar un sistema de producción alimentaria sostenible para el campo mesoamericano
Resumen. En este artículo se analiza una experiencia educativa intercultural en la que participan el pueblo maya del norte de Guatemala, el pueblo wixárika del occidente de México, campesinos mestizos de la región mesoamericana, investigadores y estudiantes de carreras del área de la salud, y cuyo objetivo es generar una propuesta de política pública para la producción de alimentos sostenibles en el campo siguiendo el modelo de las granjas escuelas agroecológicas interculturales. Se aplica una metodología de etnografía participante para rescatar la experiencia de informantes de los dos pueblos indígenas mencionados, que luego es socializada en talleres de diálogo intercultural con los campesinos y los estudiantes universitarios. La investigación permitió recuperar la cosmovisión de los pueblos indígenas cuya vida está vinculada a la Madre Tierra a través de rituales ofrecidos a los dioses y orientados a favorecer la producción del sistema de coamil (elemento central en la dieta de la milpa), en donde se siembra de manera ecológica maíz, frijol, calabaza y chile, con agregados de verduras y frutas de la región. A partir del diálogo, los actores interculturales formulan una propuesta de sostenibilidad que incluye: el sistema de coamil, la crianza de animales de traspatio, la producción de abonos orgánicos, controladores biológicos de plagas, cultivo de hortalizas y frutales, así como el manejo sustentable del agua. Se concluye que las granjas escuelas agroecológicas interculturales constituyen un espacio formativo para crear conciencia del papel que desempeña la cosmovisión de los pueblos originarios. Asimismo, el ejercicio de conjugar esta cosmovisión con los saberes agroecológicos de los campesinos de la región mesoamericana aporta elementos para formular una política pública que busca lograr la sostenibilidad de la producción alimentaria en las comunidades campesinas e indígenas en el campo mesoamericano.
Palabras clave: agroecología, educación, indígenas, interculturalidad, sostenibilidad.
Intercultural agroecological farm schools: a space for dialogue to develop a sustainable food production system for the Mesoamerican countryside
Abstract. This article analyzes an intercultural educational experience involving the Mayan people of northern Guatemala, the Wixárika people of western Mexico, mestizo farmers of the Mesoamerican region, and researchers and students of health careers whose objective is to generate a public policy proposal for sustainable food production in the countryside following the model of intercultural agroecological farm schools. A methodology of participant ethnography is applied to rescue the experience of informants from the two Indigenous peoples mentioned above, disseminated later in intercultural dialogue workshops with farmers and university students. The research made it possible to recover the cosmovision of these Indigenous peoples whose life is linked to Mother Earth through rituals offered to the gods and oriented to favor the production of the coamil system (a central element in the milpa diet), where corn, beans, squash, and chili are ecologically cultivated, with the addition of vegetables and fruits from the region. Based on the dialogue, the intercultural actors formulate a proposal for sustainability that includes the coamil system, backyard animal husbandry, production of organic fertilizers, biological pest controllers, cultivation of vegetables and fruit trees, and sustainable water management. It is concluded that intercultural agroecological farm schools constitute a formative space for creating awareness of the role played by the worldview of native peoples. Likewise, the exercise of combining this worldview with the agroecological knowledge of farmers in the Mesoamerican region provides elements for formulating a public policy that seeks to achieve the sustainability of food production in rural and indigenous communities in the Mesoamerican countryside.
Keywords: agroecology, education, indigenous people, interculturality, sustainability.
Introdução
O modelo de fazendas-escola agroecológicas interculturais1 surge a partir da recuperação da experiência educacional intercultural que envolve o povo maia da Guatemala e o povo wixárika do México — ambos originários da Mesoamérica —; os camponeses mestiços da região de Valles de Jalisco, México; os estudantes do curso de Nutrição e do Mestrado em Saúde Ambiental da Universidad de Guadalajara (México), que realizam seus estágios profissionais a cada semestre; e a três pesquisadores colaboradores do Regional de Investigación en Salud Pública do Centro Universitario de Ciencias de la Salud (CUCS) e do Centro Universitario de Ciencias Biológicas y Agropecuarias da mesma universidade. Todas essas experiências são sintetizadas em um centro modelo onde indígenas, camponeses, pesquisadores e estudantes participam da construção da fazenda-escola agroecológica intercultural, chamada pelo povo wixárika de Kiekari +Kitsikapa Nutsi, que pode ser traduzido para o português como “Pequeno Lugar Onde se Aprende com a Mãe Terra”, e que está localizada no ejido2 Emiliano Zapata, município de El Arenal, na região de Valles, no estado de Jalisco.
O local da fazenda foi selecionado conjuntamente pela equipe de pesquisadores, em consenso com os líderes indígenas e com os camponeses mestiços. Escolheu-se esse local por ser estratégico, onde convergem os problemas que afetam o campo mesoamericano e os locais sagrados do povo wixárika, além de sua proximidade com a Universidad de Guadalajara.
Conforme mencionado em uma revista científica do Centro Universitario de Ciencias Biológicas y Agropecuarias da Universidad de Guadalajara (Crocker, 2022), o Centro Modélico organizado na fazenda-escola possui as seguintes áreas de aprendizagem: a) área cerimonial, onde os camponeses mestiços e os alunos do ensino superior na área da saúde fazem parte da transmissão do conhecimento e das práticas da cosmovisão do povo wixárika, que vincula sua vida à Mãe Terra por meio de rituais oferecidos aos deuses para cuidar da natureza; b) banco de sementes nativas, cenário para aprender o sistema de produção3, no qual milho, feijão, abóbora e pimenta são plantados de forma ecológica; c) pátio posterior, para a criação de pequenos animais, como carneiros, cabras, galinhas e perus, e para aprender a produzir alimentos para consumo próprio e adubos orgânicos, como compostagem e chorume de minhocas; d) horta com variedades de hortaliças e frutas que compõem a dieta da milpa4; e) jardim botânico, para aprender a usar plantas medicinais e controladores biológicos de pragas; e f) sistema para o manejo sustentável da água, que integra a coleta de água da chuva, um poço para a extração de água dos aquíferos, a irrigação por microgotejamento, o tratamento de águas residuais contendo sabão e gordura por meio de um biofiltro, e o manejo de águas residuais humanas, com um sistema bacteriano que processa as fezes e a urina, reutilizando-as para a produção de adubos.
A fazenda-escola também tem um programa de pesquisa participativa intercultural, no qual membros do povo wixárika, estudantes, pesquisadores e camponeses mestiços aprendem métodos científicos para resgatar a experiência de informantes dos povos wixárika, mestiços e líderes sociais do oeste do México. Os resultados das pesquisas são compartilhados em oficinas de diálogo de saberes interculturais para formular propostas de segurança alimentar e sustentabilidade5 nas comunidades de Jalisco.
O modelo de fazenda-escola constitui um espaço formativo para a conscientização sobre o papel que desempenha a cosmovisão dos povos originários na regeneração da vida natural no planeta e para alcançar a sustentabilidade alimentar intercultural nas comunidades rurais e nos povos indígenas. A tese central que se pretende demonstrar com este modelo é que existe uma relação entre a cosmovisão dos povos originários da Mesoamérica, a sustentabilidade alimentar e as mudanças climáticas, que pode ser recuperada por meio de um diálogo de conhecimentos e que serve de base para construir uma proposta de fazendas agroecológicas interculturais, entendidas como espaços bioculturais para educar jovens e grupos de camponeses e indígenas. Na medida em que essa população sofre processos de exclusão social e perda da soberania alimentar, a aposta nesse modelo de fazenda-escola busca também gerar uma consciência política e um respaldo científico capazes de promover, a partir da equidade epistêmica, a formulação de uma política pública intercultural para o campo mesoamericano.
Nesse contexto, o objetivo da pesquisa foi acompanhar a construção de uma proposta educacional e de política pública baseada na experiência da fazenda-escola agroecológica intercultural e no trabalho conjunto com o coletivo da fazenda. Trata-se, portanto, como veremos mais adiante, de um projeto para a sustentabilidade alimentar do campo mesoamericano que não só permite enfrentar as mudanças climáticas com a promoção de práticas pró-ambientais, mas também respeita e preserva a cultura das comunidades e dos povos originários. A relevância da proposta reside no estado de deterioração do campo na região, como consequência do uso massivo de fertilizantes químicos, inseticidas, sementes modificadas e herbicidas, que provocaram alterações no meio ambiente, desnutrição e câncer na população desta zona do país, conforme documentado no estudo realizado por Crocker et al. (2019).
Revisão da literatura6
Nesta seção, é feita uma revisão dos antecedentes relacionados ao objeto de estudo. No que diz respeito à construção de espaços educacionais para a formação em segurança alimentar e sustentabilidade intercultural dos espaços ambientais, destacam-se as experiências apresentadas a seguir.
Em escala mundial, destaca-se o estudo de Duhn e Ritchie, de 2014, que é uma continuação de uma pesquisa de 2010, que analisa a educação em sustentabilidade dos entornos ambientais para crianças na Nova Zelândia. Esse trabalho de educação envolve a perspectiva indígena Maorí, como parte do contexto sociocultural do programa de sustentabilidade dos entornos socioambientais. As autoras concluem que os professores buscam envolver a comunidade em projetos de longo prazo. Elas também observam que as experiências baseadas em práticas relacionadas ao meio ambiente influenciam as crianças e suas famílias a priorizar experiências de ética e segurança alimentar. Além disso, elas descobriram que crianças que costumam ter comportamentos egocêntricos se transformam em pessoas que se preocupam profundamente com os outros, incluindo aqueles que vivem em outros lugares e seres não humanos, como plantas e animais.
Também vale a pena analisar o trabalho de Tomas et al. (2017), que estudaram as atitudes em relação à segurança alimentar dos alunos que cursam programas de formação de professores na James Cook University, na Austrália. Na análise, eles implementaram metodologias quantitativas e qualitativas, por meio de pesquisas e entrevistas semiestruturadas, para avaliar as mudanças de comportamento dos professores em formação.
Os autores concluem que não existe uma associação entre o conhecimento dos professores em segurança alimentar e seu comportamento, mas que este influencia as decisões que são tomadas em sua carreira como docentes. Eles apontam que, embora considerassem importante a educação em segurança alimentar para sua formação e prática profissional, tanto para eles quanto para outros australianos, os professores demonstraram níveis médios de interesse em tais temas. Assim, os autores recomendam que o comportamento dos professores seja estudado tanto na formação quanto nos primeiros anos de carreira para identificar áreas de melhoria e fortalecer a formação e o compromisso, com o objetivo de formar professores comprometidos com a sustentabilidade.
Por outro lado, no que diz respeito à América Latina, analisa-se o trabalho de Porras Contreras (2016), que apresentou uma proposta para a formação de professores de ciências na área da segurança alimentar com competências interculturais. O autor desenvolveu um projeto a partir da revisão documental e dos resultados do instrumento “Ideias sobre a segurança alimentar de futuros professores de química”, de sua autoria. Sua análise considera: i) as crenças, conhecimentos e habilidades do professor em relação à segurança alimentar a partir de sua própria experiência; ii) as crenças, conhecimentos e habilidades do professor sobre a relação entre práticas culturais, território e segurança alimentar; e iii) as crenças, conhecimentos e habilidades do professor em relação às propostas didáticas para promover a segurança alimentar.
Com base em sua análise, Porras Contreras propõe um itinerário didático para a formação de professores na Colômbia que conta com duas etapas. Na primeira, de reflexão, são avaliadas as representações sociais da crise ambiental e as ideias dos professores sobre segurança alimentar ambiental. A segunda, de concepção e implementação, aborda os fatores que determinam os conflitos ambientais; a análise desses fatores a partir da teoria do lugar e da abordagem das capacidades; a formulação de propostas de solução para os problemas ambientais a partir do sumak kawsay ou bem viver, relacionados à segurança alimentar e à prevenção e tratamento de doenças; a recuperação das propriedades nutricionais e medicinais das dietas tradicionais; e, por último, a reflexão sobre os saberes associados à segurança alimentar forte. O autor conclui que a educação em segurança alimentar intercultural é emancipadora e rompe com a visão coisificada do mundo que resulta na superexploração dos recursos naturais, na aculturação e na violência como meio de resolução de conflitos.
Com base na análise dos elementos educacionais dos trabalhos de pesquisa revisados, conclui-se a importância de incluir o resgate cultural como um elemento para a geração de propostas emancipatórias orientadas à segurança alimentar dos espaços escolares, na hora de realizar práticas de educação socioambiental com camponeses mestiços e estudantes de ciências da saúde.
Agora, no que diz respeito à análise de trabalhos de pesquisa relacionados com a construção de propostas agroecológicas interculturais a partir dos povos originários, destacam-se as seguintes experiências.
O trabalho publicado por Bidaseca e Vommaro (2023) relacionado com a recuperação das experiências do bem viver e dos saberes locais nos sistemas andinos, juntamente com o uso da agroecologia, na Bolívia, Peru e Equador, no âmbito da formação de estudantes do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso). Neste exercício, integram-se a pesquisa, a formação agroecológica de pós-graduação e a participação ativa das comunidades locais camponesas e indígenas das altas montanhas dos Andes.
Entre as contribuições da publicação, destaca-se a recuperação do calendário das sabedorias da água, a biodiversidade das sementes nativas e a soberania alimentar. O papel das mulheres nas fazendas para a preservação da vida no contexto da filosofia do bem viver e dos direitos da Pachamama também é abordado.
Também é analisada a pesquisa desenvolvida por Morales Espinosa (2012), realizada no México. Este trabalho expõe o processo de um modelo de gestão, com trinta anos de experiência, que buscou responder às necessidades e problemáticas da comunidade do centro educacional Tetsijtsilin, com uma abordagem intercultural. Para poder implementar os projetos escolares, foi realizado um diagnóstico inicial, que serviu de base para a seleção dos projetos educacionais que buscavam impactar positivamente a comunidade. Para isso, foram estabelecidos três eixos centrais: projetos agroindustriais, projetos ambientais que promovem os valores e a cultura da paz e um projeto de coleta de dados.
Os projetos agroindustriais buscavam valorizar os camponeses e comercializar os produtos produzidos por eles para contribuir com a economia escolar. Também foi incorporado um programa de gestão de resíduos recicláveis e oficinas de tecnologia agrícola que contribuíram para melhorar o estado nutricional da comunidade. Com relação aos projetos ambientais, foram desenvolvidos programas de medicina tradicional e a criação de um borboletário. Esses projetos integram valores de sustentabilidade de recursos e respeito aos ecossistemas.
Como parte do processo de intervenção, foi desenvolvido um programa de avaliação constante da comunidade por meio de pesquisas de opinião, que em algumas ocasiões foi deixado de lado devido a limitações de tempo dos alunos. Além disso, foram realizadas oficinas artísticas e de fortalecimento da língua materna, uma vez que a tele-escola secundária está localizada em uma comunidade indígena. A autora conclui que esse tipo de prática permite manter a cultura das comunidades educativas. Ela também ressalta a importância de gerar formas próprias de educação nas comunidades e promover processos de participação da escola, que permitam que os alunos tenham acesso à cultura nacional sem perder sua própria identidade. Por fim, ela aponta a necessidade de trabalhar para eliminar as práticas discriminatórias contra as mulheres por meio de uma participação protagonista delas nas atividades escolares.
Com base na revisão dos antecedentes desta seção do trabalho, conclui-se que a formulação de processos participativos com os povos originários permite melhorar a abordagem da segurança alimentar a partir da visão ocidental, através da incorporação de elementos integradores dos seres humanos com a natureza.
Referencial teórico
De uma perspectiva geral, a pesquisa baseia-se na epistemologia do sul (De Sousa Santos, 2015), que propõe romper com os modelos eurocêntricos e dar espaço aos sujeitos sociais emergentes e seus saberes, aqueles que foram excluídos pela conquista, pela miscigenação e pelos processos pós-coloniais. O objetivo é, assim, promover a participação de novos interlocutores no diálogo para regenerar a Mãe Terra, compreendida como o espaço comum das sociedades ocidentais e orientais, confrontadas pela exploração capitalista transnacional da natureza e pela defesa dos recursos naturais.
A partir dessa abordagem, se as sociedades modernas e pós-coloniais forem capazes de fazer uma autocrítica ao modelo de desenvolvimento antropocêntrico, devem incorporar os modelos de segurança alimentar e sustentabilidade, que buscam moderar a exploração dos recursos naturais, bem como a cosmovisão dos povos mesoamericanos relacionada com viver em harmonia com a natureza, o que implica uma ruptura com o modelo antropocêntrico de se relacionar com a vida natural.
Com base na epistemologia do sul, no modelo de fazendas-escola agroecológicas interculturais recria-se uma teoria de alcance médio, construída a partir da práxis sociocultural e da reflexão epistemológica do autor, denominada teoria do diálogo biocultural para regenerar a vida natural. Trata-se de uma perspectiva que visa explicar os processos biológicos e histórico-culturais resultantes da troca de conhecimentos entre povos, nações e regiões do planeta. Estes contribuem com conhecimentos para regenerar a vida de acordo com os princípios e leis que regulam os ciclos biológicos, o que permite desenvolver projetos produtivos agroecológicos, conservando as plantas, os animais e os seres humanos para viver em harmonia com a biodiversidade dos territórios.
A base empírica da teoria faz parte da prática científica e social realizada nas últimas três décadas pelo autor com os povos originários maia e wixárika, e os povos mestiços que habitam a região de Valles, no estado de Jalisco, na região mesoamericana, e que é recuperada em três publicações (Crocker Sagastume, 2006 e 2010; Crocker Sagastume et al., 2018). A partir desse trabalho, conclui-se que a cosmovisão dos povos originários, articulada em processos de diálogo de saberes com os povos mestiços, constitui uma fonte de conhecimento para fundamentar uma teoria de alcance médio, orientada para uma proposta de diálogo de saberes com a perspectiva de segurança alimentar da cultura ocidental. O objetivo é a regeneração da vida natural ou da Mãe Terra, que se encontra em crise devido à implementação de um modelo de produção intensiva que o capitalismo neoliberal vem promovendo nas últimas quatro décadas.
Os elementos do intercâmbio de saberes baseiam-se na recuperação da cosmovisão dos povos originários e dos mestiços mesoamericanos. Eles obtêm sua alimentação por meio do sistema de produção coamil, uma prática agroecológica que consiste no plantio de milho, feijão e abóbora, utilizando sementes crioulas, de acordo com os ciclos lunares. Além disso, inclui: rotação de áreas de produção, queima de resíduos vegetais para gerar minerais, banco de sementes nativas, rituais de agradecimento à Mãe Terra, saberes dos povos mestiços relacionados à criação de animais para gerar adubo, bem como o uso sustentável da água por meio da captação de água da chuva e sistemas de biofiltros para limpar a água residual. Em ambas as cosmovisões, o jardim botânico tem um papel importante no controle biológico de pragas e na abordagem do processo de saúde-doença que afeta plantas, animais e seres humanos, bem como no manejo sustentável dos ciclos da água, com o objetivo de garantir a produção contínua de alimentos e a vida natural dos territórios.
Em contrapartida, a visão antropocêntrica dominante na cultura ocidental, que subordina a natureza às necessidades humanas, contribuiu para a crise planetária que enfrentamos. De fato, os elementos que são a base da vida na Terra entraram em uma grave crise por causa do processo de industrialização impulsionado pelo desenvolvimento do capitalismo nos últimos duzentos anos e pelo aquecimento global — em sua expressão máxima — causado pelo uso intensivo de tecnologias de exploração dos recursos naturais nos últimos sessenta anos, produto da revolução verde (De Ambrosio, 2014).
O fundamento axioteleológico da teoria do diálogo biocultural tem como objetivo interpretar e compreender as causas profundas da deterioração da vida natural e sua concretização na realidade do planeta a partir de uma perspectiva transdisciplinar, por meio da integração dialética das disciplinas históricas, econômicas, antropológicas, biológicas, filogenéticas e socioambientais. Por meio desse diálogo de saberes, busca-se encontrar conhecimentos que possam ser transferíveis para superar as mudanças climáticas.
A partir dessa nova perspectiva de produção de conhecimento, as cerimônias rituais que expressam a relação entre as comunidades e a natureza se transformam em objetos de estudo bioculturais que devem ser integrados de maneira respeitosa e com rigor transdisciplinar. Isso permitirá recuperar saberes ligados a práticas de resistência cultural frente ao modelo ritual hegemônico do cristianismo, e que se baseiam em uma filosofia diferente para analisar o mundo e a vida (Castellanos, 2011; Devall e Sessions, 1985).
A teoria do diálogo biocultural para a regeneração da vida natural tem uma intencionalidade educativa para as novas gerações e se baseia em pedagogias que buscam libertar os seres humanos de posições hegemônicas, etnocêntricas e de subalternidade, produto do colonialismo e do pós-colonialismo nas relações norte-sul dos últimos quinhentos anos. Portanto, procura-se dar lugar à interculturalidade crítica, à alteridade, à liberdade e à esperança para construir um mundo capaz de respeitar a vida em todas as suas expressões.
A teoria do diálogo biocultural para a regeneração da vida natural tem como base, em seu componente educacional, a pedagogia da fronteira ou pedagogia dos limites, postulada por Henry Giroux, e a pedagogia da libertação, de Paulo Freire. E é esse o pano de fundo teórico que fundamenta o processo educacional para a formação de líderes comunitários e estudantes universitários que é realizado na fazenda-escola agroecológica intercultural.
A pedagogia da fronteira é construída a partir do pós-modernismo crítico e da pedagogia crítica. Giroux, em 2000, afirmou que o objetivo dessa pedagogia é apontar que existe um plano que separa as culturas existentes, o que é chamado de “fronteira”. Lá, os conhecimentos de cada cultura são debatidos com as aceitações e contradições existentes entre os grupos. As contribuições de cada um dos participantes devem ser entendidas como uma construção social e cultural, são submetidas à análise crítica entre culturas e, assim, transformam a realidade em que vivem (González Martínez, 2006).
Por sua vez, a pedagogia da libertação, proposta por Freire, destaca a necessidade da conscientização dos indivíduos em um processo humanizador por meio da educação popular. Esse processo educativo deve ser dialético, entre a teoria e a prática do conhecimento. Ele é construído com base na teoria dialógica, pois é através do diálogo que se promove o encontro entre a reflexão e a prática dos sujeitos, concebidos no mesmo nível e com aspirações comuns para a transformação social (Freire, 1994).
No entanto, a proposta de política pública trabalhada neste documento provém de uma perspectiva alternativa elaborada por Velásquez Gavilanes (2009). Este autor afirma que a política pública é um curso de ação intencional realizado por um ator ou um grupo de atores que lidam com um problema ou assunto preocupante. Ele comenta que as definições anteriores não contemplam elementos essenciais que uma política pública deveria ter e, por isso, as classifica como incompletas. Isso estaria relacionado, segundo Velásquez Gavilanes, à falta de elementos como: a) processos integradores de decisões, ações, inações, acordos e instrumentos; b) condução das políticas públicas por diferentes tipos de atores; c) detecção real dos problemas ou necessidades; d) contexto de onde surgem as necessidades e/ou problemas para criar uma política pública.
Para os fins da presente pesquisa, entende-se por política pública os cursos de ação, mobilização e fluxos de informação relacionados com o objetivo político de melhorar a vida natural dos espaços ambientais do território, o direito à saúde e à alimentação dos povos. Esses três elementos seriam estabelecidos, de forma democrática, pelos atores sociais — sociedade civil, camponeses e indígenas —, mas, por sua vez, seriam negociados com o setor público local, regional e nacional, com a participação da comunidade, do município e das organizações camponesas e indígenas do país.
A pedagogia da fronteira de Giroux e a pedagogia da libertação de Freire são a base do processo educativo intercultural na fazenda-escola agroecológica intercultural e contribuem para preparar os sujeitos sociais que participam para realizar um diálogo de saberes críticos, fundamentado na teoria do diálogo biocultural para regenerar a vida natural. Nesse sentido, impulsiona-se a construção de propostas de transformação que foram apresentadas no Fórum Estadual de Encontro de Comissários Ejidais e Comunidades Indígenas em Jalisco (ou Fórum de Estanzuela)7 com líderes mestiços e indígenas, que teve como objetivo concretizar a política pública “Um novo campo é possível”, em processo de articulação com outros setores da sociedade civil, como parte da metodologia de pesquisa-ação participativa.
Sujeitos e metodologia
Aplica-se um desenho metodológico de pesquisa-ação participativa (PAP) que consiste em três etapas: a) pesquisa inicial participativa, que consiste no diálogo com os atores sociais; b) educação dos participantes para que adotem uma postura crítica; e c) construção de propostas de transformação diante da problemática identificada (Colmenares, 2012).
O processo da PAP é implementado através das etapas indicadas a seguir. Na primeira, são recuperadas as experiências dos últimos trinta anos com informantes dos povos maia da Guatemala e wixárika do México. Na segunda, são integrados alunos de graduação e pós-graduação da Universidad de Guadalajara, que, através de um processo educativo intercultural com os líderes indígenas, se preparam para realizar a avaliação de segurança alimentar e sustentabilidade do projeto. Na terceira e última etapa, os líderes da fazenda-escola elaboram uma proposta baseada em suas demandas socioculturais e buscam a construção de uma política pública para transformar o campo mexicano rumo à agroecologia intercultural.
Em relação à primeira etapa, desenvolve-se o processo de diálogo biocultural e educação intercultural para construir a fazenda-escola agroecológica intercultural ou Kiekari +Kitsikapa Nutsi (Pequeno Lugar Onde se Aprende com a Mãe Terra, na língua wixárika) e a teoria do diálogo biocultural para a regeneração da vida natural, concebida em 2018. Esse diálogo consiste na recuperação histórica realizada com dois informantes fundamentais da etnia wixárika e dois membros de um povo maia da Guatemala para analisar a experiência que permitiu construir o projeto da fazenda-escola, produto de trinta anos de trabalho. Os elementos recuperados são obtidos por meio da história oral, do resgate de documentos históricos e de várias oficinas de diálogo intercultural. Um ponto de partida para realizar esse diálogo foram as reflexões que surgiram nas oficinas realizadas em suas comunidades com os quatro principais informantes, nas quais foram sintetizadas as experiências anteriores na Reserva da Biosfera Maia da Guatemala e na Sierra Madre Occidental do México. O autor participou desse processo de acompanhamento de campo e diálogo intercultural nos últimos trinta anos, portanto, o projeto da fazenda-escola agroecológica é uma síntese de um processo histórico.
Na segunda etapa do processo, entre 2019 e 2020, foram integrados dezoito estudantes de graduação do curso de nutrição e quatro do mestrado em saúde ambiental do Centro Universitário de Ciências da Saúde da Universidad de Guadalajara, que aprendem a avaliar a segurança alimentar e a sustentabilidade da fazenda por meio de pesquisas qualitativas.
Na terceira etapa, realizada no final do ano de 2022, o coletivo da fazenda, integrado por membros da etnia wixárika, pesquisadores e alunos do curso de Nutrição da Universidade de Guadalajara que aceitaram participar com líderes da Central Campesina Cardenista, comissários ejidais de comunidades mestiças e representantes indígenas, trabalhou na elaboração de uma proposta de política pública para desenvolver o setor rural mesoamericano com um enfoque de agroecologia intercultural que se articula em “Um novo campo é possível” e que foi apresentada no Fórum Estadual de Estanzuela.
Resultados
Os resultados são agrupados em quatro dimensões de análise. Em primeiro lugar, abordam-se as contribuições dos povos originários da Reserva da Biosfera Maia da Guatemala. Em segundo lugar, resgata-se a experiência com o povo wixárika que habita o oeste do México. Em terceiro lugar, analisa-se a incorporação de alunos e camponeses mestiços da região para aprender com a experiência das fazendas-escola agroecológicas interculturais. E, por último, recupera-se a proposta de política pública elaborada pelo coletivo da fazenda-escola.
1. Contribuições para o modelo de fazenda agroecológica intercultural: a experiência na Reserva da Biosfera Maia, no norte da Guatemala
No processo de diálogo, são resgatadas as culturas agroecológicas do povo maia que habita o norte da Guatemala. Entre outros aspectos relatados pelos informantes maias, destacam-se a cultura de milho com as técnicas do sistema de produção coamil, os saberes curativos no uso de plantas medicinais e os elementos da espiritualidade maia de subordinação à Mãe Terra (entrevistas com informantes do povo maia, oficina na aldeia Las Cruces, La Libertad, Petén).
Um dos principais aspectos da experiência empírico-científica do Programa de Saúde Maia Petén é a construção de um modelo de desenvolvimento integral para os povos, alternativo ao neoliberal ocidental. Trata-se de um exercício realizado nas oficinas de Las Cruces, realizadas em La Libertad (Petén, Guatemala), nas quais participam informantes do povo maia que, por sua vez, estão ligados ao processo de construção da proposta da fazenda-escola agroecológica intercultural. Nesse exercício, são delimitados o modelo de desenvolvimento neoliberal e o modelo de desenvolvimento integral em seus elementos distintivos. Assim, conforme consta na tabela 1, os participantes do povo maia caracterizam a forma como cada proposta de desenvolvimento é construída, seu propósito, os modos de intercâmbio de saberes para sua elaboração e a relação do ser humano com a natureza.
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Modelo de desenvolvimento neoliberal |
Modelo de desenvolvimento integral |
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É antidemocrático: os povos não participam do seu planejamento nem da avaliação. |
É democrático: os povos participam da elaboração. |
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Nasce das necessidades de reprodução do capitalismo internacional e gera dependência. |
Nasce das necessidades das comunidades e busca promover a soberania dos países. |
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Procura impor o conhecimento, a tecnologia e os indicadores de desenvolvimento ocidentais. |
Respeita a cultura dos povos e integra o desenvolvimento moderno, ou seja, é intercultural. |
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Não respeita o meio ambiente e, na maioria das vezes, destrói a cultura local. |
Respeita a Mãe Natureza, ou seja, é ecológico. |
Tabela 1. Os modelos de desenvolvimento: uma visão do povo maia. Fonte: elaborado pelos participantes do povo maia nas oficinas realizadas em Las Cruces, município de La Libertad (Petén, Guatemala), e reproduzido pelos participantes na construção da fazenda-escola agroecológica intercultural
Nas oficinas também é analisado o papel do poder local na luta pelo direito à saúde, ao meio ambiente e à alimentação através dos seguintes elementos: a) a importância das organizações comunitárias em prol da saúde, da alimentação e da defesa do meio ambiente, como parte dos programas de segurança para a soberania alimentar e a defesa dos direitos humanos; b) a necessidade de resistência ao modelo de colonização de saberes, através da produção de conhecimento alternativo para enfrentar as políticas neoliberais; c) a relevância da ciência e da tecnologia apropriadas para desenvolver os saberes locais em um processo intercultural. Como resultado das oficinas realizadas pela comunidade, um dos representantes do povo maia que participa da construção da fazenda-escola define a visão do modelo dessas fazendas como:
Resgatar os saberes ancestrais no cuidado do meio ambiente, da saúde e da alimentação dos povos e, com a participação plena deles, gerenciar, negociar, criar, organizar, executar e divulgar projetos agroecológicos interculturais alternativos que busquem o desenvolvimento social integral das comunidades e dos municípios, a partir de uma perspectiva política e com um enfoque holístico para resolver imediatamente os problemas de saúde, ao mesmo tempo em que se resiste ao modelo neoliberal. (Entrevista com informante maia, realizada na Aldeia Las Cruces, La Libertad)
Entre as contribuições em tecnologia apropriada para o desenvolvimento das fazendas agroecológicas interculturais, destacam-se as seguintes: a) para o cuidado da água, que inclui depósitos de água da chuva, tanto para uso doméstico como para irrigação nas hortas, bem como a construção de filtros para potabilizar a água para uso humano; b) para o manejo de resíduos humanos através da construção de latrinas secas com design adaptado para zonas tropicais selváticas; e c) para a compostagem de resíduos orgânicos domésticos e das áreas externas das residências. Essas tecnologias foram adaptadas pelos promotores do Programa de Saúde Maia Petén, com base na OMS et al. (1978), Werner (1995) e Werner e Bower (1994).
A seguir, apresentamos fotografias tiradas nas comunidades da região maia da Guatemala que ilustram a experiência na construção dos seguintes espaços na fazenda-escola agroecológica intercultural: a) cozinhas otimizadas para diminuir o consumo de lenha para o preparo de alimentos e, consequentemente, reduzir a desflorestação de área arborizada e doenças pulmonares nas mulheres que preparam os alimentos (figuras 1, 2, 3 e 4); b) sistemas de captação de água da chuva para promover o uso sustentável da água; c) biofiltros artesanais para melhorar a qualidade da água para consumo doméstico.

Figuras 1 e 2. Construção de cozinhas otimizadas por promotores de saúde ambiental. A experiência na selva maia do norte da Guatemala, Aldeia Las Cruces, município de La Libertad, Petén (Guatemala)

Figuras 3 e 4. Construção de cozinhas otimizadas por promotores de saúde ambiental. A experiência na selva maia do norte da Guatemala, Aldeia Las Cruces, município de La Libertad, Petén (Guatemala)
2. Contribuições para o modelo de fazenda agroecológica intercultural: a experiência com o povo wixárika na Sierra Madre Ocidental
A experiência de vinte anos com o povo wixárika, iniciada no ano 2000, é analisada por dois facilitadores comunitários interculturais da etnia, que comentam que o Programa Intercultural de Agroecologia, Saúde e Alimentação Wixárika (Piasaw) contribui com elementos relacionados aos objetivos que uma fazenda-escola agroecológica intercultural deve cumprir, considerando os seguintes aspectos:
a) Análise da situação de insegurança alimentar e nutricional do povo wixárika. b) Recuperação dos elementos que constituem a identidade étnica, relacionados com a cosmovisão na produção, consumo de alimentos e cuidados de saúde materno-infantil. c) Formação de pessoal primário em saúde e nutrição com atuação de liderança em sua comunidade, por meio de um processo educacional intercultural baseado na pedagogia conscientizadora, que lhes permita adquirir uma sólida formação técnica no campo da alimentação, nutrição e educação popular. d) Implementação de um programa intercultural, participativo e sustentável de etnoeducação e comunicação social para a segurança e soberania alimentar e nutricional com o povo, que parta de suas próprias necessidades e demandas e que leve em consideração a cosmovisão e a identidade étnico-cultural na produção, disponibilidade e consumo alimentar-nutricional. (Entrevista com facilitador wixárika 1, Lugar Onde se Aprende com a Mãe Terra, Pueblo Nuevo, Mezquitic, 2019)
Um dos facilitadores comunitários da etnia wixárika, que organiza uma equipe familiar e amplia o projeto para outros camponeses indígenas interessados em agroecologia e medicina tradicional, narrou sua experiência com a implementação da estratégia metodológica para desenvolver a primeira etapa da fazenda-escola agroecológica intercultural na serra wixárika da seguinte forma:
Inicialmente, convidamos jovens e pessoas interessadas a aprender como produzir seus próprios medicamentos e alimentos, a fim de melhorar o consumo de alimentos saudáveis, sem a necessidade de utilizar produtos químicos e sem esquecer sua própria cultura. Novas equipes e grupos de facilitadores são formados para capacitar o povo wixárika, o que inclui também crianças, jovens, adultos e mulheres trabalhadoras. (Entrevista com líder ancião do programa de fazendas-escola na serra wixárika, 2019)
Na segunda etapa do projeto, implementada entre 2003 e 2010, foi construída a primeira fazenda-escola agroecológica intercultural, com o nome de Kiekari +Kitsikapa, que significa, na língua wixárika, “Lugar Onde se Aprende com a Mãe Terra”. A proposta surge no contexto das demandas das autoridades tradicionais e dos membros do Piasaw para melhorar sua situação de saúde e alimentação com base em sua cosmovisão. A criação dessa fazenda contou com a autorização das autoridades da comunidade, a partir de uma decisão da assembleia comunitária, da qual participaram milhares de membros do Conselho de Anciãos Wixaritari e Kawiterutsixi. O objetivo era que os jovens e adultos wixaritari fossem capacitados nessa escola, aprendendo com a Mãe Natureza a produzir seus próprios alimentos e medicamentos, de acordo com a soberania alimentar e a filosofia do bem viver, e a conviver com a Mãe Natureza. Além disso, aprender a se curar com plantas medicinais e sem usar medicamentos, bem como a se alimentar com frutas, verduras e legumes, sem produtos químicos ou conservantes, e a elaborar seus próprios produtos naturais.
Na ampliação do projeto fazenda-escola, foram incluídos o desenvolvimento de hortas familiares, a construção de um sistema de irrigação por microgotejamento, a criação de animais em áreas externas, como cabras e galinhas, e o estabelecimento de vínculos com outros programas das comunidades wixaritari de San Andrés Cohamiata. A partir de então, o projeto ficou conhecido como Piasaw8 e começou a definir suas próprias regras, por meio de uma nova geração de promotores em três principais áreas: nutrição, agroecologia e medicina tradicional na comunidade de tuapurie.
Atualmente, a escola Kiekari + Kitsikapa é um bom lugar para aprender e observar a vida natural e manter a identidade cultural wixárika. A escola conta com os seguintes espaços: a) horta para produção de hortaliças, frutas e plantas medicinais; b) estufa para produção de hortaliças e plantas medicinais; c) residência com dormitórios e sala multiuso para a família que cuida da fazenda-escola, para visitantes da comunidade wixárika e pesquisadores da Universidad de Guadalajara; c) infraestrutura para uma moradia saudável, que inclui um depósito de águas residuais com sabão, uma latrina com compostagem e cozinha com fogão lorena; d) poço ou nascente natural, conectado à horta e à infraestrutura da escola, por meio de tubulação para o sistema de irrigação por microgotejamento e depósitos de água para uso doméstico; e) locais sagrados para realizar rituais para o Irmão Lobo (k+m+kipa) ou Lugar Sagrado dos Irmãos Lobo. O local sagrado do kieri (planta cerimonial) e contato com uma bela floresta de plantas caducifólias (pinheiro e carvalho).
Um dos principais informantes comenta sua experiência na fazenda-escola da serra wixárika:
Na escola, as pessoas aprendem muitas coisas sobre agroecologia e vida natural, mas também realizam vários tipos de trabalhos. Por exemplo, é possível aprender a produzir adubo composto, adubo de minhocas, plantar e cuidar de hortaliças, autocuidado e soberania alimentar, através do banco de sementes da comunidade, conhecer e aprender sobre plantas medicinais e conservar o meio ambiente e seus locais sagrados, de acordo com a cosmovisão e a filosofia wixárika. É uma escola bilíngue, com língua espanhola e wixárika, um lugar onde alunos, camponeses wixaritari e acadêmicos desenvolvem suas atividades e pesquisas, já que a escola possui diferentes materiais para trabalhar. (Entrevista com facilitador 1, comunidade wixárika, 2019)

Figuras 5 e 6. Casa de estudos e família wixárika sob cogestão da Kiekari +Kitsipa. A experiência na serra wixárika, no oeste do México, comunidade de Santa Catarina, município de Mezquitic, estado de Jalisco (México)

Figuras 7 e 8. Produção de hortaliças (esquerda) e sistema de produção coamil (direita). A experiência na serra wixárika, no oeste do México, comunidade de Santa Catarina, município de Mezquitic, estado de Jalisco (México)

Figuras 9 e 10. Estufa para plantas medicinais (esquerda) e estufa para hortaliças (direita). A experiência na serra wixárika, no oeste do México, comunidade de Santa Catarina, município de Mezquitic, estado de Jalisco (México)
Na terceira etapa, com base na experiência adquirida no Piasaw com assessoria do Programa de Educação em Saúde, Meio Ambiente e Nutrição em Comunidades (Proensanc) da Universidad de Guadalajara, de 2010 a 2013 foi negociado o apoio e a experiência de trabalho do Programa Estratégico de Segurança Alimentar do Fundo das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (PESA/FAO), implementado no estado de Jalisco pela Secretaria de Desenvolvimento Rural e pelo Proensanc e implementado na serra wixárika pelo Piasaw.
Para a execução do programa de agroecologia, são incorporados jovens engenheiros da Universidad de Chapingo, copatrocinados pela Secretaria de Agricultura, Pecuária, Desenvolvimento Rural, Pesca e Alimentação (Sagarpa), e biólogos contratados pelo Proensanc. Eles participam de oficinas realizadas na fazenda agroecológica Kiekari +Kitsikapa, destinadas a camponeses agricultores interessados em desenvolver suas próprias fazendas em suas comunidades, e a um grupo de mulheres e curandeiros interessados no desenvolvimento do programa de medicina tradicional, principalmente através do uso de plantas (Crocker Sagastume e García, 2016).
Paralelamente à implementação do PESA/FAO, está sendo realizada uma pesquisa sobre o estado nutricional das crianças, o que possibilitou o desenvolvimento de projetos para melhorar a nutrição graças à participação da Organização de Nutrição Infantil (ONI).
A união da PESA/FAO, ONI e Proesanc permitiu que o Piasaw ampliasse suas funções para mais localidades, através da implantação de doze fazendas agroecológicas, do desenvolvimento de quatro programas de medicina tradicional e do início de um programa para suplementar a alimentação das crianças através do atole sagrado, elaborado com tecnologia alimentar à base de milho, amaranto e sementes de abóbora9.
Durante as três etapas descritas, de 2000 a 2013, o trabalho foi muito bem desenvolvido, conforme planejado com os líderes comunitários em saúde e nutrição do povo wixárika. No entanto, houve uma suspensão temporária, que durou de 2014 a 2018, devido ao fato de o presidente de Piasaw ter sido escolhido pelas divindades ou deuses do centro cerimonial para receber e assumir o cargo de guia espiritual (neuxataame) dos jicareros de tuapurie por um período de cinco anos. Durante esse período, o trabalho da escola Kiekari +kitsikapa ficou a cargo dos jovens líderes e mulheres, que continuaram apoiando com sementes e equipamentos para a elaboração de remédios naturais, embora alguns facilitadores formados tenham se mudado para fora de suas comunidades para realizar outras tarefas.
O Piasaw continua trabalhando e busca ampliar as atividades nas áreas de agroecologia, nutrição e medicina tradicional para todas as comunidades indígenas da Sierra Madre Occidental, de acordo com as observações de um dos principais informantes:
Atualmente, o trabalho continua sendo realizado e os projetos, os materiais e o Piasaw estão sendo renovados para a obtenção de recursos com base nas pesquisas realizadas. Para que o trabalho avance, é preciso divulgá-lo e apresentá-lo à sociedade civil e ao governo. Assim, a escola Kiekari + Kitsikapa será reconhecida. É preciso lutar, realizar um trabalho compreensível para que a comunidade wixárika compreenda a situação. Porém, antes, precisamos nos unir como irmãos, seguir em frente juntos, compartilhando sabedoria e construindo um diálogo biocultural com a permissão dos povos originários e dos nossos irmãos mestiços, convivendo com a Mãe Natureza, respeitando os lugares sagrados e unindo os dois kiekariyari: Kiekari +Kitsikapa e Kiekari +Kitsipa Nuitsi10. É muito importante a formação de novas equipes de jovens sábios da etnia wixárika e facilitadores camponeses mestiços.
3. A participação de estudantes universitários e camponeses mestiços na fazenda-escola agroecológica intercultural
Desde 2019, a Fazenda-Escola Agroecológica Intercultural, situada na zona metropolitana de Guadalajara, capital do estado de Jalisco, recebe a participação de quinze alunos de graduação do curso de Nutrição, que frequentam a disciplina de Alimentação Culturalmente Sustentável uma vez por semana durante o semestre; três alunos da pós-graduação em Saúde Ambiental, matriculados na disciplina de Soberania Alimentar, também uma vez por semana; e vinte camponeses mestiços, que participam uma vez ao mês, aos sábados. O objetivo dessas atividades é promover o aprendizado em agroecologia intercultural e em metodologias qualitativas voltadas para o diálogo de saberes com membros do povo wixárika que coparticipam do projeto.
O objetivo dessa atividade, organizada em grupos semestrais, é mostrar aos alunos o modelo de fazendas-escola agroecológicas interculturais, enfatizando tanto as contribuições dos povos originários para enfrentar as mudanças climáticas quanto dos sistemas agroecológicos de produção de alimentos, para que eles possam aplicá-los em sua formação profissional. Além disso, o aprendizado de metodologias qualitativas para a pesquisa de culturas produtoras de alimentos com estratégias que não prejudiquem o planeta também é incentivado.
Durante sua permanência na fazenda, os alunos e os camponeses mestiços analisam, com uma perspectiva intercultural, as contribuições da cosmovisão wixárika para conter as mudanças climáticas planetárias. Também estudam a segurança alimentar e a sustentabilidade do modelo de fazenda-escola agroecológica intercultural, além de realizar uma revisão da literatura a partir de uma perspectiva ocidental.
Metodologias qualitativas de reflexão são utilizadas para abordar os objetos de estudo relacionados aos rituais da vida cotidiana para o cuidado da natureza nas famílias wixaritari, a produção agroecológica, os animais criados na área externa, a produção de adubos orgânicos, o banco de sementes nativas e o jardim botânico de plantas medicinais da fazenda.
Em relação aos camponeses mestiços, o objetivo é que valorizem as contribuições dos povos originários relacionadas à sustentabilidade do milho nativo e à produção de adubos orgânicos para a recuperação da vida da Mãe Terra — degradada pelo uso intensivo de fertilizantes químicos, inseticidas e herbicidas —, para que possam incorporá-las em sua prática cotidiana como agricultores em suas propriedades coletivas, conhecidas no México como ejidos. Além disso, espera-se que sejam capacitados para a construção de políticas públicas de soberania alimentar que possibilitem o desenvolvimento de um novo campo agrícola na Mesoamérica.
4. Reivindicações elaboradas pelo coletivo da fazenda-escola agroecológica intercultural para sua inclusão em políticas públicas
Na região de Estanzuela, município de Teuchitlán, Jalisco, México, em 3 de dezembro de 2022, comissários ejidais do estado de Jalisco, líderes do povo wixárika e estudantes da fazenda-escola agroecológica intercultural, deputados federais e estaduais do estado de Jalisco, líderes da Central Campesina Cardenista e pesquisadores do Programa de Educação, Saúde, Alimentação e Meio Ambiente em Comunidades do Instituto Regional de Pesquisa em Saúde Pública da Universidad de Guadalajara se reuniram com o objetivo de construir uma proposta para resgatar o campo mesoamericano e recuperar a vida da Mãe Terra (Central Campesina Cardenista, 2022).
É nesse espaço que a equipe da fazenda-escola agroecológica intercultural, com o apoio de pesquisadores da Universidad de Guadalajara, apresenta uma proposta para criar uma política pública para consolidar um “Novo campo mesoamericano!”. Essa proposta inclui os seguintes elementos de desenvolvimento social: a) produção alimentar com base na agroecologia e na soberania alimentar; b) geração de modelos de desenvolvimento social e modos de produção de acordo com o bem viver, ou seja, em harmonia com a natureza; c) geração de modelos que integrem o processo de vida e saúde dos seres humanos, das plantas e dos animais com os elementos naturais que os sustentam, a partir de uma perspectiva biocultural.
Para complementar, a equipe da fazenda também propõe as seguintes prioridades a serem consideradas: a) uma política para o manejo sustentável da água, que integre as propostas ocidentais e as dos povos originários; b) uma política voltada para a recuperação das sementes nativas e sua implementação em bancos de sementes para todos os agricultores, com o cuidado ritual dos povos originários; c) uma política orientada para o desenvolvimento de fertilizantes orgânicos através da criação da Indústria Mesoamericana de Adubos Orgânicos, com o objetivo de recuperar a vida da Mãe Terra nos territórios; e d) uma política para recuperar a cultura e os territórios sagrados do povo wixárika.
Discussão
Conforme o exposto anteriormente, a Mãe Terra está passando por uma crise ambiental causada pelo modelo de desenvolvimento industrial implementado nos últimos duzentos anos, que priorizou o uso de combustíveis fósseis como fonte de energia. Essa situação se agravou nos últimos setenta anos com a política da revolução verde, que estimulou a produção de alimentos com métodos intensivos. Dessa forma, o uso de sementes transgênicas, agroquímicos, inseticidas e herbicidas foi promovido, contribuindo não apenas para a deterioração dos recursos bióticos do planeta, mas também para o abandono das práticas tradicionais de cultivo pelos camponeses mesoamericanos, o aumento da insegurança alimentar, a perda da soberania alimentar do país e o aumento dos casos de câncer em todas as suas formas, entre outros problemas.
O modelo de fazendas-escola agroecológicas interculturais pode ser documentado como uma fonte de conhecimento inovadora que permite resolver os problemas de autossuficiência alimentar das famílias e das comunidades camponesas e indígenas. Nele se integram elementos de soberania alimentar, da nova saúde pública para a atenção primária e aspectos socioambientais orientados para recuperar a biodiversidade dos territórios. Todos esses elementos são combinados com uma visão de educação intercultural que possibilita a integração dos seres humanos à vida natural ou à Mãe Terra.
A proposta das fazendas também destaca a importância de incluir na educação dos camponeses mestiços e dos estudantes de ciências da saúde os aspectos socioambientais e os modos de vida sustentáveis; o resgate cultural como elemento para a geração de propostas emancipatórias relacionadas à segurança alimentar dos espaços escolares e à elaboração de políticas públicas; a formulação de processos participativos com os povos originários; e, por último, a necessidade de superar a visão antropocêntrica na abordagem da segurança alimentar, conforme apontado na análise de revisão da literatura (Bidaseca e Vommaro, 2023; Duhn e Ritchie, 2014; Porras Contreras, 2016; Tomas et al., 2017).
O núcleo de inovação do conhecimento proposto pelas fazendas agroecológicas construídas junto com os povos originários da Mesoamérica nos últimos trinta anos, que têm sido objeto de reflexão a partir da teoria do diálogo biocultural para regenerar a vida natural (Crocker Sagastume et al., 2018), baseia-se na epistemologia do sul (De Sousa Santos, 2015).
É uma proposta elaborada pelo autor na busca de gerar um modelo de desenvolvimento social que permita resolver os problemas de saúde, desnutrição e deterioração socioambiental dos territórios a partir da identidade étnico-cultural dos povos originários e mestiços da região, e, ao mesmo tempo, contribuir com os aportes dessa experiência empírico-teórica de gestão social do conhecimento para a construção de uma proposta para deter as mudanças climáticas que afetam o planeta a partir dos povos do sul, como alternativa aos projetos antropocêntricos formulados pelo modelo de desenvolvimento sustentável a partir dos centros de conhecimento do norte. Essa visão é compatível com a filosofia da ecologia profunda proposta por Estermann (٢٠١٦) (ver Crocker Sagastume, 2021).
No contexto educacional formal e informal voltado para a região mesoamericana, dominado pelas perspectivas da agricultura intensiva, a estratégia de construir fazendas-escola agroecológicas interculturais inseridas nos espaços sociais onde vivem os camponeses propicia a construção de cenários para o aprendizado teórico-prático. Assim, configura-se uma proposta para enfrentar os danos decorrentes dos processos intensivos na produção de alimentos. Esses espaços se baseiam na filosofia do bem viver e conviver, onde existe um reconhecimento dos códigos e condutas éticas e espirituais na relação sociedade-natureza, em paralelo com os princípios básicos de unidade, igualdade, liberdade, solidariedade, respeito, equidade social, étnica e de gênero na participação, bem-estar comum e responsabilidade.
Nesse contexto de aprendizagem, os líderes comunitários e os estudantes entram em contato com elementos experienciais dos povos originários por meio da prática, podendo assim comprovar a pertinência e a aplicabilidade do que aprenderam em sua comunidade e nas salas de aula da universidade. Considera-se, portanto, que os líderes camponeses e os estudantes universitários precisam de várias experiências, observações, concepções e vivências dentro desse modelo de fazenda para orientar ações de transformação em suas comunidades e em sua prática profissional. Esses elementos coincidem com os postulados da pedagogia da fronteira, na qual os conhecimentos de cada cultura são colocados em debate junto com as coincidências e contradições existentes entre os grupos e, assim, as contribuições dos participantes devem ser entendidas como uma construção social e cultural que convém submeter a uma análise crítica intercultural e, assim, contribuir com o processo de transformação da realidade em que vivem (González Martínez, 2006).
A proposta de agroecologia aqui apresentada, abordada a partir de uma perspectiva intercultural e resumida na frase “alimentar e nutrir a Mãe Terra para lhe dar vida”, permite o aprendizado prático do sistema de produção coamil, próprio dos povos originários da Mesoamérica, e o integra com o uso de adubos orgânicos e a reutilização de matéria orgânica, em um processo que combina os conhecimentos ocidentais e indígenas. Essa prática comunitária intercultural não só favorece a utilização dos recursos que as pessoas possuem, sem substituí-los por insumos externos, mas também implica uma mudança de consciência em direção à melhoria dos ambientes e à inclusão de conhecimentos que foram abandonados pelos camponeses mestiços mesoamericanos. O aprendizado dessa perspectiva transformadora da agroecologia intercultural coincide com os conceitos da pedagogia da libertação de Paulo Freire, que aponta que o processo educativo deve ser dialético entre a teoria e a prática do conhecimento, que se constrói, por sua vez, com base na teoria dialógica, pois é através do diálogo que se promove o encontro entre a reflexão e a prática dos sujeitos, concebidos no mesmo nível e com aspirações comuns para a transformação social (Freire, 1994).
Essas iniciativas agroecológicas buscam construir alternativas ao modelo de produção agroindustrial, promovendo uma abordagem crítica de educação ambiental que incentive a participação e a ação cidadã na construção de sociedades mais justas e sustentáveis, com o objetivo de diminuir o impacto das mudanças climáticas globais. De acordo com Camacho Benavides et al. (2022), os movimentos pela soberania alimentar e a escalada da agroecologia são propostas feitas por povos e comunidades camponesas e indígenas que oferecem opções promissoras para melhorar a qualidade de vida e reduzir o impacto da crise socioambiental e alimentar.
O diálogo de saberes, como estratégia científica para recuperar os conhecimentos dos povos originários e integrá-los de forma criativa com os saberes ocidentais, constitui uma aposta que deve ser impulsionada nas escolas e faculdades de ciências da saúde, entre outras, com o objetivo de gerar uma nova cultura de sustentabilidade intercultural para deter as mudanças climáticas planetárias. Nessa linha de pensamento, Pérez Ruiz e Argueta Villamar (2022) destacam a importância de recuperar, por meio do diálogo de conhecimentos, os saberes dos povos originários sobre o patrimônio ambiental. Os autores comentam a relevância da descolonização epistêmica, ou seja, superar a colonização do pensamento. Com esse objetivo, propõem que o diálogo de conhecimentos se desenvolva de forma horizontal e participativa e que a interação entre atores com sistemas de saberes distintos seja fomentada, dentro de um marco ético de respeito e justiça.
A este respeito, durante o Fórum Permanente para as Questões Indígenas de 2023, a Organização das Nações Unidas (ONU) revalorizou os saberes dos povos originários: os povos indígenas têm muitas das soluções para a crise climática e são guardiões da biodiversidade. Além disso, o secretário da ONU indicou que, há décadas, essas comunidades são pioneiras na gestão sustentável da Terra e colocam em prática o bem viver com a Mãe Terra. Ele também destacou ações como o cuidado com a água, a agricultura e o consumo saudável (ONU, 2023).
As demandas apresentadas pela equipe da fazenda-escola agroecológica intercultural, visando a construção de políticas públicas para o campo mesoamericano no Fórum de Estanzuela, baseiam-se nos princípios da ecologia profunda e da agroecologia intercultural mencionados anteriormente, segundo os quais seres humanos, plantas e animais convivem harmoniosamente para “dar vida à Mãe Terra”.
Essas demandas coincidem com as abordagens de Velázquez, que foram apresentadas anteriormente, e com as de Habermas em relação ao conceito de sociedade civil no âmbito da teoria da ação comunicativa (Solares, 2015). Dessa forma, busca-se reconstruir uma concepção crítica da sociedade, utilizando uma reformulação paradigmática da razão em sociedades em transição para a democracia, como as dos países mesoamericanos.
Para Habermas, existe um terceiro modelo, que propõe um sistema de democracia deliberativa. Nesse modelo, não é possível recuperar o equilíbrio perdido na relação sistema-mundo da vida, nem entre os diferentes setores sociais, quando prevalecem interesses particulares. Em vez disso, o equilíbrio é alcançado pela criação de interesses universalizáveis, orientados pela deliberação em processos políticos participativos, caracterizados pela liberdade e equidade entre as partes envolvidas. É nesse terceiro modelo que se inserem as demandas propostas pelo grupo da fazenda-escola e pelos pesquisadores, em aliança com a Central Campesina Cardenista, que buscam integrar-se a uma política pública voltada para o desenvolvimento do campo mesoamericano.
Conclusões
A proposta das fazendas-escola agroecológicas interculturais, construída em parceria com os povos originários da Mesoamérica, resgata a importância da implementação de aspectos socioambientais e modos de vida sustentáveis interculturais na educação de camponeses mestiços e estudantes de ciências da saúde, por meio do diálogo de saberes com os povos originários dessa região.
Essa experiência empírico-teórica de gestão intercultural do conhecimento fornece elementos para construir uma proposta que enfrente as mudanças climáticas, como alternativa às propostas antropocêntricas formuladas pelo modelo de desenvolvimento sustentável a partir dos centros de conhecimento do norte. Ao mesmo tempo, também contribui para resolver os problemas de soberania das pessoas que vivem nas comunidades camponesas afetadas pela revolução verde.
A construção de políticas públicas participativas, que integrem grupos excluídos em aliança com estudantes e pesquisadores universitários, representa uma ruptura com os modelos verticais predominantes nas sociedades ocidentais. Essa abordagem abre caminho para o debate sobre novos modelos de construção de sociedades equitativas, fundamentadas no diálogo interepistêmico.
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Werner, D. e Bower, B. (1994). Aprendiendo a promover la salud: un libro de métodos, materiales e ideas para instructores que trabajan en la comunidad. Fundación Hesperian.
* Sobre este artigo: A pesquisa que fundamenta este artigo é realizada desde 2018 até a presente data em comunidades maias do norte da Guatemala, comunidades indígenas da etnia wixárika do oeste do México e populações camponesas rurais do oeste do México. A pesquisa conta com autofinanciamento do pesquisador, apoio de transporte do Instituto Regional de Investigación en Salud Pública da Universidad de Guadalajara e parceria com o Consejo de Agroecología, Salud y Alimentación Wixárika, o Programa Salud Maya Petén e a Central Campesina Cardenista.
O autor declara que foram seguidos os códigos éticos de respeito à cultura das comunidades e dos entrevistados, que participaram voluntariamente e com autorização de seus respectivos povos na construção das fazendas-escola agroecológicas interculturais. A privacidade dos entrevistados foi respeitada e não existe conflito de interesses quanto a sua participação, nem quanto à participação das comunidades, organizações ou instituições envolvidas na presente pesquisa. O conteúdo do artigo, os gráficos e as fotografias são inéditos e de propriedade do autor.
Sobre esta tradução: A tradução deste artigo para o português foi realizada no âmbito da Chamada de Tradução 2025, organizada pelas Revistas Uniandes com o respaldo da Vice-Reitoria de Pesquisa e Criação da Universidad de los Andes (Colômbia).
** René Cristóbal Crocker Sagastume. Médico nutrólogo, doutor em Pesquisa Educacional Aplicada. Professor pesquisador titular no Instituto Regional de Investigación en Salud Pública, Centro Universitario de Ciencias de la Salud da Univesidad de Guadalajara (Guadalajara, Jalisco, México). É membro do Sistema Nacional de Investigadores do Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología de México, e sua linha de pesquisa é a cultura e a educação em saúde, alimentação e meio ambiente. Entre suas últimas publicações, destacam-se: “Social Management for Food Sovereignty in Mexican Farmers. A Case Study in The Valles Region, Jalisco, Mexico”, um artigo escrito em coautoria publicado em 2022 pela ASJ: International Journal of Agricultural Research, Sustainability, and Food Sufficiency (IJARSFS), 9(3), http://www.academiascholarlyjournal.org/ijarsfs/publications/abstract/ijarsfs_nov22abs1.htm; e “Proceso educativo para desarrollar un sistema de vigilancia de soberanía para la seguridad alimentaria en comunidades en una universidad mexicana”, artigo publicado em 2023 pela Revista Española de Nutrición Comunitaria, 29(1), https://www.renc.es/imagenes/auxiliar/files/RENC-D-22-0028._Manuscrito_final.pdf. recricrosa_7@hotmail.com
1 O termo “escolas agroecológicas interculturais”, presente no título, corresponde ao mesmo conceito de “fazendas-escola agroecológicas interculturais”. Nesta publicação, a equipe editorial optou por empregar a expressão “fazenda-escola” no corpo do artigo por considerá-la mais apropriada ao contexto universitário do projeto.
2 No México, “ejido” refere-se a uma forma de propriedade coletiva da terra, em que parcelas são destinadas à agricultura comunitária. Esse sistema foi estabelecido após a Revolução Mexicana como parte da reforma agrária, permitindo que comunidades campesinas tivessem acesso e utilizassem a terra de forma coletiva, respeitando direitos tradicionais e promovendo a produção rural sustentável.
3 O termo “coamil” refere-se a um sistema agrícola tradicional praticado pelo povo indígena wixárika no México.
4 A dieta da milpa é um padrão alimentar tradicional mesoamericano baseado no cultivo associado de milho, feijão e abóbora.
5 O conceito de segurança alimentar está relacionado com aspectos da produção que levam em consideração a proteção do meio ambiente, e o conceito de sustentabilidade está ligado à economia circular no cuidado com o meio ambiente.
6 A revisão aqui apresentada também foi trabalhada em Crocker Sagastume e Gómez Cervantes (2021).
7 Celebrado em 3 de dezembro de 2022, em La Estanzuela, município de Teuchitlán, Jalisco.
8 O Programa Intercultural de Agroecologia, Saúde e Alimentação Wixárika (Piasaw) é composto por um grupo de curandeiros e promotores de saúde que se organizaram para trabalhar em projetos de saúde e alimentação em benefício de suas comunidades. Os membros deste programa criaram a primeira fazenda-escola agroecológica intercultural ou Kiekari +Kitsikapa como um espaço de formação para suas comunidades.
9 O atole sagrado é uma bebida formulada através de estudos realizados pela equipe de nutricionistas da Proesanc, que incluiu estudos organolépticos, bromatológicos e de vida útil. É formulado com 60% de sementes de milho, 30% de sementes de amaranto e 10% de sementes de abóbora.
10 Na língua wixárika, kierayari significa “lugar de estudo”; Kiekari +Kitsikapa, “lugar onde se aprende com a Mãe Terra”; e Kiekari +Kitsikapa Nutsi, “pequeno lugar onde se aprende com a Mãe Terra”.