Levar a sério a rede de vínculos cósmicos das religiões de matriz africana: entrevista com Marcio Goldman

Marcio Goldman*

Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ (Brasil)

Luis Meza Álvarez**

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, UFRN (Brasil)

Naturaleza y Sociedad. Desafíos Medioambientales • número 6 • maio-agosto 2023 • pp. 170-192

https://doi.org/10.53010/nys6.06

Recebido: 23 de junho de 2023 | Aceito: 1 de agosto de 2023

Resumo. Exploramos com Marcio Goldman alguns aspectos que contribuem para ilustrar os princípios cosmológicos do que é conhecido na literatura acadêmica brasileira contemporânea como “religiões de matriz africana”. Por meio das oferendas às divindades, somos apresentados a uma compreensão da dinâmica das forças que sustentam o universo das religiões afro-brasileiras, bem como a uma dimensão nacional de algumas das polêmicas sobre suas práticas. Em particular, ao analisar os argumentos que sustentam as críticas às oferendas de animais, examinamos os elementos problemáticos das concepções e sensibilidades contemporâneas ao abordar as relações entre essas práticas e o meio ambiente, entre humanos e não humanos e entre humanos e divindades. Assim, são apontados os limites e as contradições dos pressupostos teóricos e conceituais com os quais esses universos religiosos são geralmente abordados. Essas perspectivas reproduzem, de forma intencional ou inadvertida, visões simplistas e preconceituosas; mais especificamente, revelam suas raízes etnocêntricas e racistas. A partir de uma longa experiência de pesquisa em um terreiro de candomblé angola, como modulação de um universo religioso mais amplo, Marcio Goldman apresenta uma matriz de inteligibilidade que traduz a complexidade de um modo de pensar que concebe o mundo como uma grande rede que conecta tudo o que existe (humanos, divindades, animais, plantas etc.). Essa concepção está presente nas diversas expressões ou modulações das religiões de matriz africana nas Américas (candomblé, santería, vodu etc.). As oferendas e o processo legal que buscou bani-las são úteis para se pensar em visões de mundo que se confrontam, em condições de desigualdade, e trazem à antropologia o desafio de realizar um exercício capaz de retransmitir um diálogo simétrico e não hierárquico, como expressão de uma relação respeitosa com as religiões de matriz africana. Isso, por sua vez, exige da prática científica antropológica uma desaceleração capaz de criar uma linguagem de comunicação baseada em um diálogo que não seja construído a partir de uma posição de superioridade.

Palavras-chave: candomblé, oferendas, religiões de matriz africana

Tomarse en serio la red de vínculos cósmicos en las religiones de matriz africana: entrevista con Marcio Goldman

Resumen. Exploramos con Marcio Goldman algunos aspectos que contribuyen a ilustrar los principios cosmológicos de las conocidas en la literatura académica brasileña contemporánea como religiones de matriz africana. A través de las ofrendas a las deidades, somos introducidos a una comprensión de la dinámica de las fuerzas que sostienen el universo de las religiones afrobrasileñas, así como a una dimensión nacional de algunas polémicas sobre sus rituales. En particular, mediante el análisis de los argumentos que fundamentan las críticas a las ofrendas animales, se examinan los elementos problemáticos de concepciones y sensibilidades contemporáneas al abordar las relaciones entre estas prácticas y el medioambiente, entre humanos y no humanos, y entre humanos y deidades. Así, se señalan los límites y contradicciones de los presupuestos teóricos y conceptuales con los que suelen abordarse estos universos religiosos. Estas perspectivas, de modo intencional o inadvertidamente, reproducen visiones simplistas y prejuiciosas; más específicamente, revelan sus raíces etnocéntricas y racistas. A partir de una larga experiencia de investigación en un terreiro angola, como modulación de un universo religioso más amplio, Marcio Goldman presenta una matriz de inteligibilidad que traduce la complejidad de una forma de pensamiento que concibe el mundo como una gran red que conecta todo lo existente (humanos, deidades, animales, plantas, etc.). Tal concepción está presente en las variadas expresiones o modulaciones de las religiones de matriz africana en las Américas (candomblé, santería, vudú, etc.). Las ofrendas y el proceso legal que buscaba ilegalizarla son útiles para pensar visiones de mundo que se confrontan, en condiciones de desigualdad, y plantean a la antropología el desafío de realizar un ejercicio capaz de retransmitir un diálogo simétrico y no jerárquico, como expresión de una relación respetuosa con las religiones de matriz africana. Esto a su vez exige del quehacer científico antropológico una desaceleración capaz de crear un lenguaje de comunicación basado en un diálogo que no se construya desde una posición de superioridad.

Palabras clave: candomblé, ofrendas, religiones de matriz africana

Taking Seriously the Network of Cosmic Links in African-Matrix Religions: Interview with Marcio Goldman

Abstract. We explore with Marcio Goldman some aspects that contribute to illustrating the cosmological principles of what is known as African-matrix religions in contemporary Brazilian academic literature. Through offerings to deities, we are introduced to an understanding of the dynamics of the forces that sustain the universe of Afro-Brazilian religions, as well as to a national dimension of some polemics about their rituals. In particular, by analyzing the arguments underlying the criticisms of animal offerings, we examine the problematic elements of contemporary conceptions and sensibilities in addressing the relationships between these practices and the environment, humans and non-humans, and humans and deities. Thus, we identify the limits and contradictions of the theoretical and conceptual assumptions from which these religious universes are usually approached. These perspectives, intentionally or inadvertently, reproduce simplistic and prejudiced views; more specifically, they reveal their ethnocentric and racist roots. Based on an ample research experience in an Angolan terreiro, as a modulation of a broader religious universe, Marcio Goldman presents a matrix of intelligibility that translates the complexity of a way of thinking that conceives the world as a great network that connects all that exists (humans, deities, animals, plants, etc.). Such a conception is present in the varied expressions or modulations of African-matrix religions in the Americas (candomblé, Santeria, voodoo, etc.). The offerings and the legal process that sought to outlaw them are helpful to think about worldviews that confront each other—in conditions of inequality—and pose a challenge to anthropology to carry out an exercise that can transmit a symmetrical and non-hierarchical dialogue as an expression of a respectful relationship with African-matrix religions. In turn, this demands from anthropological scientific work a deceleration that is able to create a language of communication based on a dialogue not built from a position of superiority.

Keywords: African-matrix religions, candomblé, offerings


Luis Meza Álvarez (LMA): a partir da sua experiência de pesquisa de várias décadas com religiões de matrizes africanas no Brasil, conhecidas como “religiões afro-brasileiras” ou candomblés, como você define esse universo e quais seriam as características mais gerais dessas religiões no Brasil?

Marcio Goldman (MG): primeiro, acho que é importante lembrar que a minha experiência concreta é com religiões de matriz africana no Brasil e, obviamente, as variações fazem parte dessas religiões. Variações com outros países das Américas, mas também variações internas ao caso brasileiro. Mais especificamente, a minha experiência mais direta é com uma das modalidades, das modulações dessas religiões, que é o chamado “candomblé baiano”, no sentido de que “baiano” qualifica um estilo de candomblé. Então, eu tenho uma longa convivência com um terreiro1 no sul da Bahia, o Matamba Tombenci Neto, e um pouco é isso que conforma o meu pensamento em relação a isso, de algum modo, porque justamente eu acho que o que caracteriza essas religiões — e é por isso que eu sempre gostei do termo “matriz”, religiões de matriz africana, não só porque “matriz” tem o sentido de “matriz”, de descendência, de geração e procriação, mas tem também um sentido meio matemático, de permutações, transformações, de modalidades. Então, eu acho que o que se chama de “religiões de matriz africana” nas Américas, chamemos assim, como todo mundo sabe, é o resultado de um longuíssimo processo histórico que, em função da escravização e das opressões seculares que os povos arrancados da África para as Américas sofreram, se constituiu a partir de uma série de processos de adaptação, de combinação. Mas eu acho que é muito importante frisar que, quando se diz “adaptação” e “combinação”, não se deve imaginar só uma coisa reativa.

Esses processos de combinação, de adaptação, não apenas se adaptaram, como também, de algum modo, elas adaptaram o mundo no qual elas foram inseridas. E, nesse sentido, como é um jogo recíproco de adaptar-se e adaptar alguma coisa, em cada região, em cada lugar, dependendo das circunstâncias históricas que envolvem — desde as regiões da África de onde as pessoas vinham até o sistema econômico no qual e com o qual elas se defrontaram —, você foi tendo resultantes diferentes na criação dessas religiões de matriz africana. Você mencionou o nome “afro-brasileira” e, em certo sentido, elas são afro-brasileiras, mas esse nome se presta à confusão porque tem gente que acha que elas são diferentes do que você encontra na África. Evidentemente, elas são diferentes do que se encontra na África. O que se encontra na África hoje é diferente do que se encontrava há 500 anos, porque ela também foi vítima do colonialismo, do imperialismo etc. Também houve um processo de adaptação, nesse sentido amplo que eu estou dando para essa palavra, no caso africano. Então, o que você vai encontrar tanto pelo Brasil inteiro quanto pelas Américas inteiras é isso que a gente poderia chamar de “modalidades” ou “modulações dessas religiões”. Às vezes com nomes diferentes, então você tem candomblé, mas você tem também batuque, umbanda, você tem uma infinidade de nomes. Xangô, no Nordeste, numa certa época.

Eu vou tentar fazer uma caracterização, porque o interessante dessas religiões é que, de um certo ponto de vista, elas são muito parecidas. No entanto, quando você aproxima o olhar, você vai descobrir que elas são muito diferentes. Mas é por isso que a noção de “matriz” me parece interessante. Elas são como transformações umas das outras. Coisas que são mais pronunciadas em umas são mais enfraquecidas em outras e vice-versa. Coisas que são muito fortes em algumas em outras não aparecem, dependendo dessas circunstâncias históricas de longa duração. Estamos falando de 400 anos de história. A gente não está falando de um processo que começou ontem. Foram talvez umas 5 milhões de pessoas trazidas só para o Brasil, [provenientes] dos mais diferentes povos e assim por diante. Eu acho que a gente poderia dizer que o que caracteriza essas religiões é uma certa…, eu hesito um pouco usar a palavra “cosmologia”, mas a gente poderia usar, porque eu acho que tem a ver com o que a gente vai discutir. Uma cosmologia, mas onde a palavra “cosmo” deve ser mais enfatizada que a palavra “logos”, eu diria. Ou seja, a ideia de que os humanos estão inseridos em alguma coisa que os transcende ou que, pelo menos, não se limita a eles.

Essa coisa envolve tudo o que o Ocidente separa, como natureza, cultura, minerais, vegetais, animais, humanos e assim por diante. Ou seja, é um sistema de forças que ultrapassa as forças meramente humanas. Esse sistema de forças é, de alguma maneira, veiculado ou se constitui naquilo que, numa chave religiosa, se chamaria de “divindade”. Essas divindades, como todo mundo sabe, não é que elas representam, elas são essas forças. Elas são feitas por essas forças e elas são essas forças. Então tem a força do trovão, tem a força do raio, tem a força da água, tem a força dos animais, tem a força dos vegetais. Cada uma delas é incorporada em uma divindade específica. Diferentes religiões cultuam diferentes divindades, mas elas todas vibram, como as pessoas falam, nessa mesma faixa, nessa mesma frequência, de algum modo. E eu acho que é essa ideia de que o que está em jogo é um cosmo que não está separado dos humanos, que é a grande invenção — grande no sentido de que mudou a história. É uma invenção ocidental, uma invenção grega, que o cosmo está fora da esfera humana. O cosmo é alguma coisa que não concerne aos humanos. Os humanos não têm nada que ver com isso. Justamente o que você tem aqui é o contrário, é a ideia de que os humanos estão inseridos nesse cosmo e eles têm que saber lidar com essas forças.

Então eu acho que cada uma dessas religiões é o resultado histórico de um pano de fundo que junta esse tipo de cosmologia com as circunstâncias históricas nas quais elas foram inseridas, como fato. E esse é um ponto muito importante, porque vai repercutir no racismo religioso, em tudo isso, com o fato de quem criou essas chamadas “religiões de matriz africana”, elas não caíram do céu. Elas foram criadas por uma longa experiência histórica, e elas estão sendo criadas todos os dias, eu diria. Quem as criou, contra todas as probabilidades, foram esses povos escravizados, arrancados da África para a construção do mundo moderno. No fundo, é disso que a gente está falando. Agora, assim, eu tentei fazer uma descrição de um ponto alto de abstração. É claro que para você descrever mais concretamente, você teria que pegar as singularidades de cada religião. No caso do candomblé, por exemplo, mas é muito parecido na santería cubana e em algumas outras variações, o que você tem é isso: esse cosmo está repartido de algum modo, ele está povoado, acho que é a melhor palavra, por divindades, por seres, por aquilo que nós, ocidentais, chamaríamos de “natureza”, “cultura” e “sobrenatural”. E digo nós, porque eu acho que essa divisão não existe lá. E todos os seres que povoam isso aí estão conectados de alguma maneira. Então, você tem um sistema, um panteão de divindades. Essas divindades não são simples, porque existe Xangô, por exemplo, uma das divindades, mas, como todo mundo sabe, existem modalidades ou qualidades de Xangô. E, quando uma pessoa se inicia no candomblé e ela é de Xangô, ela pertence a Xangô, ela vai constituir o seu Xangô, a sua divindade pessoal. O candomblé, por exemplo, implica a ideia de uma divindade pessoal. A pessoa, a divindade pessoal e a divindade genérica, todas elas estão conectadas por níveis, em uma gradação de intensidade. A divindade genérica suprema é de uma intensidade tamanha que ela não pode se relacionar diretamente com os homens. São apenas fragmentos delas. Bom, e não apenas os humanos estão nisso. Tudo o que povoa o cosmo está ligado a isso, quer dizer, uma pedra pertence a uma determinada divindade. Um animal pertence a uma determinada divindade. Uma planta, lugares do mundo, dias da semana, cores, tudo o que se pode imaginar. Organizações sociais, os blocos afros de Salvador, cada um deles é de uma divindade, cada terreiro é de uma divindade. Então, tudo aquilo que o pensamento analítico ocidental separa de algum modo é pensado não como uma confusão, mas é pensado como uma grande rede de conexões em que essa palavra “pertence a” não designa propriedade. Não quer dizer que o orixá é dono da pedra ou é dono da pessoa. Designa justamente essa conexão que existe entre esses diferentes seres. Não sei se dá para ter uma ideia primeira da coisa, digamos assim.

LMA: dá, sim. Marcio, justamente pegando o gancho dessa última afirmação, existe um entendimento geral que associa essas divindades (orixás, inquices, voduns) com alguns dos chamados “fenômenos da natureza” (mar, rio, mata, vento, entre outros), e como se fosse a única associação possível, a única associação específica material dessas forças. E, pelo que eu entendo e isso se conecta com o tema das oferendas, como você mencionou , existem várias modalidades dessas forças e que, em determinados momentos, existe uma conexão específica com algum desses fenômenos, mas que essa conexão expressa os modos de existência, além desses específicos, dessas associações com os fenômenos da natureza. Pelo que eu entendo, aqui o que está na base é uma concepção sobre vida e existência ao redor do conceito de axé. Como você define, concebe e traduz o conceito de axé?

MG: “axé” é a palavra que se usa nas tradições afro-americanas, principalmente oriundas mais do mundo iorubá, no caso banto, de Angola, por exemplo, a palavra que se usa é “ngunzu”, mas que tem a mesma ideia. Que é uma ideia muito comum em muitas cosmologias do mundo. Na antropologia, é famosa por causa da noção de “mana”, por exemplo. Ou seja, a ideia de que existe uma força vital única que percorre o cosmo e que impregna cada um dos seres que habitam esse cosmo. É como se todos os seres fossem uma espécie de instanciação dessa força que ultrapassa tudo e, no caso mais conhecido das religiões de matriz africana, que é esse modelo iorubá, digamos assim, do axé, eu sempre imaginei que ele poderia ser traduzido, porque trata-se de uma tradução, e eu estou tentando traduzir nos termos que eu consigo falar um pensamento que eu reconheço que ultrapassa em muito a capacidade dos meus meios de exprimi-lo. Então, a gente faz o máximo que a gente pode. Eu acho que a ideia é essa, que você tem uma espécie de força, e eu diria isso, que é uma força vital. Talvez ela seja sinônimo de vida no sentido mais abstrato. E que talvez seja eu estou especulando, pode ser que eu esteja cometendo um erro teológico aqui , mas que talvez esteja encarnada na ideia muito comum, na África em geral e que veio para as Américas, de uma divindade suprema, absolutamente inacessível, que pode ser Nzambi no candomblé de nação de Angola, de origem banto.

Mas pode ser Olorum nas religiões de matriz iorubá ou de matriz fon, e assim por diante. É como se essa divindade estivesse tão distante, eles dizem, que não tem culto para ela. Você só pede proteção, benção e tal, mas sem nenhuma garantia de comunicação, como existe comunicação com orixás, inquices e voduns. Mas talvez essa divindade seja uma primeira materialização dessa força que percorre o cosmo, o que permitiria ler todos os mitos de criação em que essa divindade produz o mundo, como uma espécie de modulação dessa força que ela promove para a constituição dos seres numa escala meio descendente, começando com as divindades, passando para os humanos, passando para os animais, passando para as plantas, passando para cada coisinha que existe no mundo. É uma instanciação dessa força. Essa força tem, como eu disse, modulações. Ela tem modalidades. É mais do que uma ideia de conexão, é uma ideia de vínculo constitutivo. Conexão pode dar a falsa ideia de que as coisas existem separadamente e depois elas entram em conexão. A ideia de vínculo acho que é mais interessante, porque as coisas só existem porque estão vinculadas. Se você se separar dessas coisas, tudo vai desaparecer. Eu acho que todo o trabalho ritual, todo o trabalho religioso que é feito nessas religiões visa sobretudo à manutenção desses vínculos. A possibilidade de você captar essa força, redistribuir essa força, cortar conexões perigosas, fortalecer vínculos vitais e assim por diante. Então, nesse sentido, de novo essa história, o vocabulário ocidental não é muito adequado para dizer isso. Então, quando você fala, por exemplo, Xangô e o raio. Qual é a relação de Xangô e o raio? Aí você pode dizer que Xangô representa o raio. O que é uma formulação tendenciosa, porque, por trás dela, está a ideia de que o raio existe e Xangô não. Xangô é apenas um símbolo representando o raio. Mas, eu acho é um esforço de imaginação meu , que, do ponto de vista dessas religiões e das pessoas que as praticam, Xangô é tão real quanto o raio. De tal maneira que a relação Xangô-raio não pode ser uma relação expressiva, não pode ser uma relação de simbolização. Ela é uma relação de consubstancialidade. Quer dizer, Xangô é o dono do raio, ele representa o raio, mas num certo sentido ele é o raio também. Talvez a expressão certa seja “Xangô é o raio”, mas esse “é”, esse “ser”, implica muitas coisas. Implica representar, implica comandar, implica materializar. O raio materializa Xangô. Enfim, e o que é válido para Xangô, e o raio é válido para Xangô e seus filhos humanos, é que as pessoas são de Xangô. Elas também são um pouco Xangô, digamos assim, porque elas são compostas, primordialmente, por essa modalidade dessa força, que é uma força indiferenciada, mas que se diferencia ao se concretizar no mundo. Elas são formadas por essa força, mas não apenas. Quase todas as religiões de matriz africana sustentam que as pessoas, eu vou usar um termo, enfim, clássico da antropologia, participam de diferentes forças. Então, uma pessoa pode ser de Obaluaiê, mas ela tem como segundo santo Iansã. Ela tem como terceiro santo Oxóssi. Ou seja, ela é um composto de diferentes modalidades dessa força, que não é fácil manter em equilíbrio. Para a maioria imensa das pessoas, esse equilíbrio se mantém ao longo da vida. Para outras pessoas, esse equilíbrio fica tão problemático que as divindades, de algum modo, as convocam para ingressar na religião. Isso é um dado fundamental dessas religiões. Todo mundo diz isso. Ninguém entra no candomblé porque quer. Você é chamado de algum modo. Por quê? Minha interpretação, a partir do que eu acho que aprendi com as pessoas do candomblé, é que é preciso que essas forças sejam equilibradas. Elas têm uma tendência a uma certa entropia, a uma certa desorganização. A pessoa entra, é iniciada. E a prova disso é que ela é iniciada, mas ela não para de ter que fazer rituais para manter esse equilíbrio. Não é de uma vez, ninguém fica pronto para sempre. Você é feito, como se diz, mas essa feitura é uma feitura instável. É clássico isso, depois de um ano, você tem que fazer suas obrigações. Depois de três, depois de cinco, depois de sete. Velhas mães de santo2 dão obrigações com 50 anos de iniciadas. O que significa que o mundo é pensado como esse cosmo que eu falei. Ele não é estático, ele é muito dinâmico. Ele pode se degradar, ele pode se caotizar.

E é como se essas religiões fossem grandes máquinas para trabalhar esse tipo de cosmo e esse tipo de forças que compõe o cosmo. Então é isso, por exemplo, você quer ver um exemplo clássico, que já correu muita tinta e muita bobagem sobre isso, o chamado “sincretismo religioso”, em que você diz “Ogum é Santo Antônio”. No caso do candomblé baiano, no Rio de Janeiro, é São Jorge e tal. Esse “é” tem que ser entendido dessa mesma maneira. Quando você escuta realmente o que as pessoas dizem, ninguém acha que eles são a mesma coisa no sentido banal do termo, porque um é uma divindade dessa natureza cósmica, o outro foi um santo, ou seja, um humano que viveu nessa terra e, por causa de suas boas ações, acabou sendo santificado. Mas pode ser, as pessoas especulam assim, que Santo Antônio fosse de Ogum, por exemplo, quem sabe? Ou seja, a relação estabelecida entre o santo e a divindade é a mesma relação estabelecida entre a divindade e o fenômeno natural, as pedras que pertencem a ela e os humanos. O que a antropologia se equivocou foi transformar o sincretismo numa coisa em si, sem perceber que essa associação de divindades católicas ou quaisquer outras, indígenas, por exemplo, é da mesma natureza que as outras com todos os outros vínculos que existem. Então, foi a antropologia que reificou o problema do sincretismo. O problema do sincretismo não existe. O problema do sincretismo é o mesmo problema de como é que você sai da sua terra, é arrancado da sua terra, chega numa nova terra, como é que você vai restabelecer os vínculos que você tinha na sua terra? Todo mundo sabe que Iemanjá é a divindade do rio Ogun, mas não tem rio Ogun no Brasil. O vínculo foi estabelecido com o mar, por exemplo. Então Iemanjá se tornou a divindade do mar. Ou seja, os grandes especialistas descobriram que havia uma homologia, alguma associação possível entre as forças de Iemanjá e as forças do mar. Iemanjá também pode ser associada à Nossa Senhora dos Navegantes. Noutras palavras, o esforço ao qual essas religiões nos convidam, eu acho, é abandonar esse método analítico cartesiano de dividir a dificuldade em várias partes para tentar solucioná-la. Então, a associação de Iemanjá com o mar é uma coisa, com Nossa Senhora é outra, com a pessoa é outra. Eu acho que é uma coisa só. É um pensamento. É uma rede de vínculos. Enfim, se a gente vai falar depois de oferendas e tal, acho que tem tudo a ver com as oferendas, porque o que o candomblé exige, não só obviamente dos pesquisadores, antropólogas e antropólogos, mas também exige do mundo, é que reflitam um pouco sobre o modo como eles estão pensando um pensamento que não pensa que nem eles. Se é que posso me exprimir assim. Esse que é o problema que eu acho que está colocado.

LMA: falando justamente no dia a dia dos diferentes rituais que praticantes dessas religiões fazem para justamente trabalhar o vínculo já assistente, mas que precisa ser trabalhado em diferentes momentos entre essas diferentes forças, a gente poderia pensar que as oferendas são esse ato de mediação entre humanos, por exemplo, e divindades, entre humanos e não humanos. Em outro texto você afirma que, além disso, a oferenda é o ato de participação e contribuição dos humanos na manutenção também do cosmos (Goldman, 2023). Você poderia explicar essa ideia?

MG: primeiro, eu preferi, depois de muito tempo, só mais recentemente é que eu resolvi adotar decididamente o termo “oferenda”, em vez de falar em “sacrifício”, por exemplo. Por várias razões, mas a primeira delas é, de novo, o fato de que a oferenda animal não deve ser separada do restante das oferendas que são feitas. A oferenda animal é apenas uma das oferendas possíveis. Oferecem-se flores. Oferecem-se perfumes. Oferecem-se vegetais em geral. Oferecem-se inclusive minerais. Qualquer altar de uma divindade tem as pedras, as famosas pedras, que são fundamentais, que também, num certo sentido, são a divindade. A divindade está manifesta concretamente naquela pedra. E existe uma gradação de forças, porque nesse modelo, essa força é uma força, como eu disse, que ela tem gradações quantitativas e, de algum modo, qualitativas. Embora não num nível muito abstrato, seja um monismo cósmico incrível, porque a grande força é o axé, que é o mesmo, mas ele modula. Como ele modula, você vai tendo todas essas variedades. Então, qualquer pessoa que já frequentou o candomblé ou a santería sabe que você pode fazer oferendas mais fracas, digamos assim. Uma das coisas pelas quais você faz oferenda é para a chamada “resolução de problemas”. Mas essa resolução de problemas tem que ser entendida no sentido mais que materialista. O problema também é a manifestação de um desses desequilíbrios cósmicos de força do qual a gente estava falando.

Você consulta um sacerdote ou uma sacerdotisa especialista. Ela vai lá nos seus processos divinatórios, que são mais de um. E ela diagnostica que há um desequilíbrio, que você tem que tentar combater esse desequilíbrio. Não há nenhuma garantia, nunca. Isso é muito importante. Você tem que tentar combatê-lo a partir de oferendas simples, ofereçamos banhos de proteção, flores e tal. E aí você vai tendo uma gradação, até que você chega naquilo que é mais potente, que são as oferendas animais, dentro das quais há uma hierarquia também: entre os animais de menor porte, pombos, galinhas e tal, passando por uma grande quantidade e chegando no que, bastante raro nos candomblés brasileiros, por exemplo, é a oferenda de um boi. Isso tem a ver com a potência. As mães de santo explicam que são forças muito poderosas. Para você oferecer um boi, você precisa se cercar de tantas precauções e tantos cuidados que muitas vezes, como elas dizem, nos dias de hoje, não tem mais como fazer isso. Então, via de regra, você termina em animais como o bode ou o carneiro, que são uma espécie de grau máximo da potência. Você pode, como sempre no candomblé, ler isso de diferentes maneiras. Você pode ler numa chave, e as pessoas do candomblé também leem assim, porque afinal de contas elas também cresceram nesse mundo cristão etc. Então você está oferecendo um animal, por exemplo, para uma divindade, esperando que essa divindade retribua o animal que você está dando, o que não é falso, mas, se for reduzido a isso, cria a falsa impressão de que se trata de um contrato, de um toma lá, dá cá. Interesseiro. Utilitarista. Bom, obviamente não é só isso. Quer dizer, se você está oferecendo esse animal que é portador de axé para aquela divindade, é porque você quer contrabalançar um certo desequilíbrio que aconteceu entre essa divindade e a pessoa que está sofrendo as consequências desse desequilíbrio. Então, o animal certamente é um mediador, mas ele é mais do que um mediador. Ele é uma espécie de revinculador, digamos assim. Não é toma lá, dá cá e aí o assunto acabou, como num contrato capitalista, por exemplo. Não é isso, é mais um pacto do que um contrato. É uma vinculação. E os vínculos podem enfraquecer. Se os vínculos enfraquecerem, os humanos vão sentir as consequências disso. Vai ter que haver uma intervenção para reforçar esses vínculos. Então, eu acho que essas coisas têm que ser lidas simultaneamente em todos esses planos. E aí cabe às especialistas rituais diagnosticarem que tipo de intervenção deve ser feita: há uma intervenção muito forte, por exemplo, que é dizer “olha, você tem que se iniciar no candomblé”.

Por isso que se diz que ninguém entra porque quer. Você chega lá e a mãe de santo diz para você “olha a tua situação é tal, teus vínculos…”, eu estou traduzindo, ela não vai dizer com essas palavras, “os teus vínculos estão em tal estado de confusão, de desequilíbrio, que no teu caso...”. “No teu caso”, isso é muito importante. Não é uma religião universalista, não é uma religião proselitista, isso tem que ser sublinhado; não pode ser, dada a sua cosmologia. “No teu caso, o correto a fazer é a iniciação. Você tem que entregar a sua cabeça para as divindades”. Ou seja, você tem que consolidar de uma maneira muito rigorosa vínculos que já existem, porque a pessoa já pertence a uma divindade, ela já tem essas conexões e aconteceu alguma coisa ali que exige uma intervenção mais direta na coisa. Ao mesmo tempo, acho que é importante dizer, para não ter a ideia falsa, de que o fato de que essa iniciação, por exemplo, que é pedida pela divindade não quer dizer que a pessoa não tenha liberdade de escolha. Eu nunca vi na minha vida ninguém, ao contrário do catolicismo o cristianismo sempre fez , ser iniciado à força no candomblé. O que a mãe de santo fala é “olha, a situação é essa. O correto a fazer é a iniciação”. O problema agora passou a ser da pessoa.

Ela vai dizer se ela topa, se ela aceita esse diagnóstico e se ela vai ingressar no caminho indicado ou se ela vai correr os riscos de ficar fora. Repito, são sempre riscos. Não tem nada inevitável. A pessoa pode se recusar e não acontecer nada com ela. A pessoa pode se recusar e pode acontecer coisas com ela. Tem sempre uma margem de indeterminação ali. Então, assim, e é uma formulação muito bonita do Ordep Serra (1995), que é preciso entender: num certo sentido, essas religiões são universalistas, porque elas estão abertas, em tese, para todo mundo, mas elas não são universalistas no sentido das grandes religiões ocidentais. O fato de ela estar aberta para você faz com que você tenha liberdade de escolha, que você deva aderir a ela ou não. Elas são para todo o mundo, no sentido de que pode ser que as divindades exijam a iniciação de qualquer um. Nesse sentido é que elas são para todo o mundo. Mas não é porque você quer. A tua vontade vai entrar em cena numa etapa posterior. Alguém pode querer, eu já vi isso, você chega e fala “Não, eu quero me iniciar. Eu quero ser…”. A mãe de santo joga os búzios3 e acha que não é o caso, que a pessoa ainda não está preparada, que não é para ela, então a vontade dela não vai determinar nada.

LMA: Marcio, nesse entendimento sobre as oferendas, é possível identificar que é colocado em conexão um conjunto de forças nesse ato, que vão além dos indivíduos. Essa é uma concepção que permite pensar que esse ato vai além das partes que entram em contato entre si e que participam nas oferendas. Que vai além dessa ideia, que a gente pode encontrar também em certa literatura sobre religiões de matrizes africanas, que veem as oferendas como uma troca interessada. Como você mencionou, uma ação que é produto de um contrato, em que a ação beneficiaria a pessoa que realiza a oferenda. Agora, a gente poderia pensar então a oferenda, por exemplo, como condutora do axé nesse sentido?

MG: assim, ela é condutora do axé, mas ela também tem axé. Então, por isso que eu digo que isso aí que você falou é verdade. Acho que ela é pensada em qualquer dessas religiões, qualquer das religiões que praticam as oferendas. Todas praticam oferendas, algumas não praticam oferendas animais, por exemplo, mas todas essas religiões praticam oferendas, o que significa que isso é um traço comum entre elas. Em geral, se tenta fazer uma distinção entre as que fazem a oferenda animal. Mas, de novo, isso é reificar demais a oferenda animal num modelo muito ocidental de que o animal é uma coisa substancialmente distinta do vegetal, por exemplo. Mas isso não é verdade. Tem variantes que não oferecem animais, mas oferecem outras coisas. A lógica da oferenda é a mesma do ponto de vista das pessoas do candomblé que oferecem animais. Essas pessoas apenas estão fazendo oferendas mais fracas, digamos assim, mas não é diferente do que elas fazem em relação aos animais. Então, assim, eu acho que ao mesmo tempo elas diriam, qualquer uma dessas religiões, é um contrato, sim. De alguma maneira, você oferece esperando uma retribuição da divindade. Mas é mais do que um contrato. Essa relação não é contratual, porque um contrato acaba quando eu ofereço uma coisa, você faz o serviço para mim e nossa relação acabou. Nesse caso, é difícil dizer que está limitado a isso. Por isso que eu usei essa palavra também muito ocidental do “pacto”. O pacto é uma coisa que não se esgota na realização da coisa. O vínculo continua e nesse caso o vínculo é prévio, inclusive, você tem um vínculo prévio, já existente. E, ao mesmo tempo, acho que o que você chama a atenção, que é muito importante, é que tem o outro lado dessa história. As divindades também precisam dessas oferendas, porque essas oferendas repõem o axé que está sendo consumido nesse processo todo. O axé é uma força que se desgasta, até mesmo o das divindades, eu diria. Estou arriscando aqui uma especulação teológica. Mas eu diria que entre os humanos isso é sabido. Uma mãe de santo joga búzios para você, e aí ela diz para mim “me cansei muito”. Esse cansaço não é só um cansaço de energia física, é também uma certa perda do axé que tem que ser reposto. Como é que ele vai ser reposto? Ele pode ser reposto por essas oferendas e ele pode ser reposto até pelo pagamento financeiro que você faz pelo serviço.

Quando alguém faz qualquer trabalho num terreiro de candomblé, uma parte do que se paga é a parte do material que vai ser usado, evidentemente. Afinal de contas, está todo mundo metido numa sociedade capitalista. Não tem outro jeito de fazer isso. Mas tem o que você chama de “dinheiro do chão”. O dinheiro do chão, que não é contabilizado financeiramente talvez, ele pode ser muito pouco, dependendo das posses da pessoa, ele repõe de algum modo, de alguma maneira, a energia, a força, o axé que está sendo consumido naquele processo. Eu acho que seria possível pensar nisso também na relação com as divindades. Elas também, de algum modo, estão consumindo algo do axé ao fazerem as coisas funcionarem nesse vínculo. O animal, e isso é muito importante, o animal não é nunca um animal qualquer. É o animal adequado para aquela divindade. É o animal adequado para aquela situação. E mesmo esse animal adequado para aquela divindade tem que ser ritualmente preparado para o que vai acontecer. Ele vai, de algum modo, repor, vai reestabilizar esse consumo de força que está acontecendo naquele momento.

LMA: entrando no tema da dimensão nacional de algumas polêmicas sobre as práticas de algumas oferendas, especialmente a oferenda animal nessas religiões. Em 28 de março de 2019, o Supremo Tribunal Federal [STF]4 do Brasil decidiu que a Lei do Rio Grande do Sul que permite o “sacrifício” de animais em ritos religiosos era constitucional. E isso se deu em resposta à análise de um recurso extraordinário que chegou até à Corte do STF, no qual se discutia a validade da Lei Estadual 12.131, de 2004, do Rio Grande do Sul, que permite as oferendas animais, o sacrifício animal, nos termos do recurso. E eu lembro que, na época, você publicou um texto curto, intitulado “Dez gritos sobre a campanha contra as religiões de matriz africana” (Goldman, 2015). E ali você analisa e discute os argumentos que embasam a crítica ao chamado “sacrifício animal” como uma continuidade do racismo secular dirigido a essas religiões, apontando que, nessas críticas a essa prática, tem um elemento novo. A novidade nessa campanha seria, cito, o “agenciamento entre uma semiótica reacionária ou antimoderna, mobilizada por evangélicos, e uma semiótica moderna, mobilizada por ecologistas, em geral brancos”. Em que consiste o agenciamento entre essas semióticas? E por que elas seriam, como você afirma, as duas caras de uma mesma moeda?

MG: acho que esse é um ponto importante, claro. O que deflagrou a ação no Supremo e que acabou com um bom resultado, em que o Supremo considerou absolutamente inconstitucional tentar proibir essas práticas. Isso começa exatamente com uma ação feita no Rio Grande do Sul, na Assembleia Legislativa, a partir da inclusão da proibição do sacrifício de animais em cerimônias religiosas na Lei do Código Estadual de Proteção dos Animais por parte do deputado estadual evangélico Manoel Maria dos Santos, do Partido Trabalhista Brasileiro [PTB]5. Os evangélicos, como se sabe, têm lá seus conflitos cósmicos, cosmológicos e políticos com o povo de santo6. São contra essas práticas. Consideram essas práticas, sei lá, diabólicas ou o que quer que seja. Mas isso ficava, de algum modo, na esfera religiosa. Nesse momento, isso passou para a esfera jurídica, para a esfera do Estado, para a esfera das leis. E, nesse momento, houve essa aliança imprevisível entre forças políticas de origem evangélica e forças políticas de origem ecologista, verde, defensores dos direitos animais. Não estou querendo generalizar. Não estou dizendo que todos os evangélicos fazem isso, muito menos que todos os ecologistas e defensores dos animais fazem isso, mas um grupo faz. E uma deputada de esquerda ligada aos movimentos ecológicos é a autora dessa ação, que tramitou durante muito tempo e acabou no Supremo sendo considerada inconstitucional qualquer tentativa de proibição em nome de um preceito pétreo da Constituição brasileira, que é a liberdade religiosa. Então você tem isso.

Me chamou a atenção, nesse momento, essa conexão entre o que eu chamei aí nesse texto de “duas semióticas aparentemente opostas”. Eu chamei de “antimoderna” e “reacionária” no sentido muito técnico que o Bruno Latour dá ao termo, sem nenhum sentido pejorativo. Mas seriam essas semióticas que recusam os chamados “princípios básicos da modernidade”. E a outra é uma semiótica propriamente moderna, já vamos ver por quê. No caso evangélico ou antimoderno, a minha interpretação sobre por que os evangélicos movem essa guerra contra as práticas de oferenda das religiões de matriz africana é porque eles consideram que os praticantes de religiões de matriz africana estão errados, ou seja, eles estão cultuando seres que não deveriam ser cultuados porque são seres do mal e que eles erroneamente, equivocadamente, consideram do bem. É um conflito propriamente religioso, cosmológico. Você poderia dizer que a solução, que é o que os evangélicos pretendem, é que essas pessoas renunciem a esse mal e se convertam ao bem. Isso é explícito. Tem essa pequena vantagem de ser explícito. E eu rotulei de alguma maneira ou conceitualizei esse tipo de prática de “perseguição”, porque o fato de ser um conflito cosmológico religioso não quer dizer, todo mundo sabe, hoje em dia, que isso não acarrete práticas criminosas de perseguição, destruição de terreiros etc. Boicote a terreiros, coisas horríveis que aparecem nos meios de comunicação, nas redes sociais e tal. Mas, portanto, daria para chamar isso, que é o termo que se usa muito, de uma “postura intolerante”. É como se essa vertente antimoderna dessa campanha, como eu chamei aí, fosse marcada pela intolerância. E é o termo que se usa muito, “intolerância religiosa”. O termo “intolerância” está ok. O risco do termo “intolerância” é que ele sugere que a solução é a tolerância. Então, esse é um pouco meu ponto. Nada contra a crítica à intolerância, mas achar que quem resolve o problema da intolerância é a tolerância não vai para lugar nenhum, como comprovam os movimentos de resistência hoje em dia, que dizem claramente: “não queremos tolerância, queremos respeito”. É um lema que é repetido abundantemente, porque a posição tolerante é ilustrada por essa semiótica moderna verde que vai dizer o seguinte: “eles têm toda a liberdade de fazer o que eles quiserem. A gente não está nem aí para os seus erros, como os evangélicos estão. A gente não quer converter eles. A gente só quer que eles não façam o que a gente acha inadmissível”.

Então você tem uma jogada muito terrível, do meu ponto de vista. Você é supercompreensivo, supersimpático, mas tem um momento que você diz “não, daqui não pode passar”. Essa é a tolerância moderna. Isabelle Stengers tem uma longa reflexão da tolerância e a intolerância como os dois lados da mesma moeda, é um pouco o que eu estou usando aí. E aí, o ponto é o seguinte: por que a oferenda animal parece tão inaceitável para essa semiótica? Para a outra, a gente sabe por que ela é inaceitável, por razões, como eu disse, cósmicas e religiosas. Você está fortalecendo as forças do mal que você equivocadamente pensa que são as forças do bem. E eles não são capazes, obviamente, de pensar que diferentes religiões podem conceptualizar isso de maneira diferente. E isso é o que a sentença do Supremo os obriga a fazer. Liberdade religiosa quer dizer isso, aquilo que você acha certo, universal, o outro não acha certo, universal. E você não tem nenhum direito de interferir nesse negócio.

Mas, no caso da semiótica moderna, é mais complicado. Eu usei uma distinção que Deleuze faz em algum lugar, é como se eles pensassem que essas religiões, não é que elas estão erradas, elas estão iludidas. Elas oferecem isso não para seres do mal, mas oferecem isso para nada. É isso que a modernidade acredita. A modernidade “sabe” que essas divindades não existem. Então é um escândalo você ficar oferecendo animais, sacrificando, para usar o termo que eles gostam de usar, que é um termo que eu nunca vi ninguém de religião de matriz africana usar. Você ficar sacrificando animais para coisa nenhuma, no final das contas. Isso é consagrado num texto que eu comento num outro artigo, que foi publicado um pouco depois de um ex-deputado verde que propõe que as oferendas sejam substituídas por imagens dos animais em vez de você oferecer animais (Goldman e Flaksman, 2019). Obviamente, porque se as divindades não existem, você pode oferecer também coisas que não existem, coisas falsas. Então essa é a tolerância ocidental. Na verdade, essa tentativa de criminalizar as oferendas das religiões de matriz africana revela a verdadeira natureza dessa tolerância. Ela não é o outro da intolerância, ela não é o antídoto da intolerância. Ela é a outra face da intolerância. Uma, aposta na acusação de que os outros estão errados, e essa, supercompreensiva, diz assim “não, coitados, eles estão apenas iludidos. Eles acreditam numas coisas que eu sei “eu sei” quer dizer “é assim” que não existem. Então você chama a polícia do mesmo jeito. Nos dois casos você chama a polícia.

Na verdade, os evangélicos nem chamam a polícia, eles tentam agir com seus próprios meios. No caso moderno, você chama a polícia. Você tenta fazer uma lei proibindo. Então, assim, dado que essas religiões de matriz africana ou as religiões que praticam as oferendas, sobretudo animais, inegavelmente são religiões, são “territórios negros”, para usar uma famosa expressão da Raquel Rolnik não quer dizer que só tenham negros ali, mas é um território negro , obviamente, essas duas coisas são as duas faces do racismo religioso. De um lado, um racismo de matriz judaico-cristã, a gente poderia dizer, de matriz meio religiosa, mas que quer afetar práticas que vieram de outra parte do mundo, que não é judaico-cristã. E, do outro lado, você tem também essa forma de racismo dissimulado, porque o fato de que essa lei ia afetar pessoas afrodescendentes, pessoas negras, religiões negras, religiões de territórios negros, isso não é considerado. Ela é proposta de maneira abstrata, como se ela fosse atingir todo mundo. Mas quem é que está envolvido em práticas de oferenda? Provavelmente 90% dessas pessoas são pessoas que têm uma vinculação afro. Então, é nesse sentido que eu acho que daria para fazer uma equação. E uma delas esclarece melhor a outra, no meu ponto de vista. A intolerância revela os mecanismos meio perversos da tolerância e vice-versa.

LMA: Marcio, crueldade, maus-tratos e o argumento dos direitos dos animais aparecem como argumentos mobilizados na crítica à “prática do sacrifício”. Em outro texto, você fala que existe uma incompreensão das oferendas, do que são as oferendas nesse universo de religiões afro-brasileiras e religiões de matriz africana. O que está em jogo nessas práticas e que se relaciona com o que você menciona também naquele outro texto como “a natureza e o funcionamento do axé” (Goldman, 2023)?

MG: então, em geral, se contesta essa acusação dos maus-tratos com dois argumentos: um que diz que nas religiões de matriz africana os animais não podem ser maltratados. Do ponto de vista teológico, eles não podem ser maltratados porque é preciso que eles aceitem, que eles se aceitem como oferendas. Então, isso eu já vi no meu trabalho de campo mais uma vez. Se um animal for reticente demais, rebelde demais, resistir demais ao processo de abate religioso, esse animal é, pelo menos provisoriamente, poupado. Eu nunca vi nenhum animal ser maltratado. Em geral, eles são comprados próximos do momento da oferenda. Eles não ficam nos terreiros e eles são bem guardados e bem tratados, porque é preciso que eles de algum modo entrem nessa relação, entrem, digamos assim, de “bom grado” nessa relação. Esse é um dos argumentos que se usa para dizer que, de direito, não pode haver maus-tratos. O outro argumento é o que diz que, no fundo, esses animais também servem como alimento para as pessoas que participam. E eu acho que os dois argumentos são muito verdadeiros. No último texto que eu escrevi, eu percebi que eles têm que ser muito mais bem elaborados (Goldman, 2023). Então, por exemplo, eu acho que não dá para reduzir, rápido demais, as oferendas animais a uma coisa meio utilitária de que no fundo é comida, porque aí, de novo, é você desrespeitar demais a cosmologia dessas religiões. Num certo sentido, eu detectei que, por trás desse argumento, continua essa suspeita moderna de que, no fundo, as divindades não existem, ou seja, como se a oferenda fosse um subterfúgio para que os humanos comessem.

E que você dá um pouquinho lá para a divindade, mas isso não importa. Bom, não é isso que as pessoas dizem. As pessoas dizem que as oferendas e a refeição que é feita em seguida, que é fundamental, é um compartilhamento, uma comensalidade entre humanos e divindades. As divindades comem certas partes dos animais que são oferecidas primeiro a elas e, depois, os humanos [comem]. Isso é uma grande comensalidade, de tal modo que não se pode simplesmente, numa festa de santo, dizer que não quer o animal, porque o problema não é um problema de gosto pessoal. Você está recusando ali a comensalidade, ou seja, o vínculo com as divindades, por onde fluem as forças do axé. Então, acho que tem que levar isso em conta.

Esta frase é muito legal: “não queremos tolerância, queremos respeito”. Eu acho que essa frase tem que ser levada para o pensamento também. Então, dizer que “tudo bem com as oferendas, porque no fundo é para dar comida para as pessoas” é ser tolerante. Mas ser respeitoso é levar a sério o que as pessoas estão dizendo, o que elas estão pensando e aceitar. Não é uma questão de crença, não é questão de crer, é uma questão de aceitar. É aceitar que o que está em jogo ali é essa conexão complexa entre humanos, animais e divindades e uma série de outras coisas.

E isso, eu acho, repercute também no argumento dos maus-tratos. Porque, está certo, as pessoas dizem isso, um animal que manifeste muita resistência, esse animal não deve ser oferecido. Mas isso não é porque, como a tolerância diria, estamos respeitando a vontade do animal. O que está em jogo é sobretudo a vontade das divindades. Um animal reticente sinaliza que a oferenda pode não ser aceita. Esse é o problema central. Então, de novo, temos que reintroduzir a divindade na história, porque o argumento do animal resistir faz com que humanos e animais sejam reais, separados das divindades, que são pensadas como irreais, evidentemente. De novo, tolerância. A Isabelle Stengers diz isso, que combater a tolerância, evitar a tolerância, que é para onde o pensamento ocidental “bonzinho” sempre tende, é um instrumento fundamental de pensamento. Você tem que colocar isso sempre em jogo. Esse argumento é um argumento que, no fundo, resvala para a tolerância? Eu acho que esse é. Eu acho que respeitar é reconstituir a cadeia toda. Os animais estão sendo oferecidos às divindades. São elas que demandam. São elas que aceitam. Elas que retribuem. Elas comem primeiro, muito fundamental isso. Quando o animal se mostra reticente, isso sinaliza uma possibilidade de origem divina e não de origem animal. Então, o prudente, o correto, do ponto de vista ritual, teologicamente, é evitar esse risco. Você pode até correr esse risco, mas é por tua própria conta, evidentemente.

Agora, existem lugares que maltratam os animais? É bem possível. Mas é um exemplo que eu uso nesse texto, se for para falar em maus-tratos animais. Ninguém fica fazendo lei contra isso, porque ninguém vai desafiar a Sadia7, sei lá ou coisa que o valha. Ninguém vai dizer para a Sadia usar um frango falso. Só dizem que é para as pessoas do santo usarem um frango falso. Então, assim, do mesmo modo que você tem leis para proteger a liberdade religiosa e que, do ponto de vista das pessoas das religiões de matriz africana, a posição dessas religiões é igual à da Constituição brasileira. Cada qual no seu cada qual, como eles falam. Quer dizer, ninguém quer dizer como é que os evangélicos devem se comportar, só não aceite que eles queiram dizer como você se comporta. Então, a ideia de liberdade religiosa é imanente a essas religiões, porque ela não tem um modelo universalista no sentido de que, uma vez que é para todo o mundo, você é obrigado a aderir a ele. No caso do candomblé, é para todo o mundo, mas você não é obrigado. E, às vezes, nem quando você quer, você consegue aderir, vai depender de uma escolha transcendente e não de uma vontade pseudoimanente, um livre arbítrio absoluto e irrestrito da pessoa.

LMA: um dos temas de interesse também deste dossiê da revista diz respeito a essa sensibilidade ambiental. Uma curiosidade pela existência de uma sensibilidade ambiental ou um posicionamento ou entendimento dessas práticas, dessas religiões, em relação à preservação do ambiente. E aí, a partir de alguns casos de trabalhos de pessoas próximas, por exemplo, no trabalho de Mariana Renou (2011), em que ela documenta ações sociais numa casa de candomblé Angola, na região metropolitana do Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense, em que existe uma reinterpretação, uma adaptação, enfim, agenciamentos, que se preocupam em dar um tratamento ao chamado “lixo religioso”, com os mutirões de limpeza. Mariana documenta também o que eles chamam de “oferendas ecológicas”, como um exemplo de uma conexão pontual com essas sensibilidades contemporâneas, a partir de interpretações que passam necessariamente pela cosmologia dessas religiões. Bom, na sua experiência, como você pensa nesses assuntos?

MG: eu acho que isso também tem que ser colocado do mesmo jeito que a gente estava colocando antes. Acho que tem que evitar a armadilha da tolerância. Vários terreiros aderiram a essas propostas de evitar o chamado “lixo religioso”, de usar produtos que são degradáveis naturalmente nas oferendas etc., o que eu acho ok. O que não dá para confundir, eu acho, é esses procedimentos e o aspecto propriamente religioso do que está em jogo. Ou seja, há um limite e esse limite só pode ser estabelecido pelas pessoas que praticam isso aí. Então, não sou eu que vou dizer onde é que esse limite está ou onde esse limite não pode estar. Eu acho que o chamado “respeito à natureza”, para usar uma terminologia contemporânea de novo, eu acho que ele é imanente a essas práticas religiosas, uma vez que, como nós vimos, o mundo é pensado como uma rede de conexões. A palavra “natureza” não faz muito sentido, ela é usada porque é a palavra que se usa por aí. Mas, do ponto de vista propriamente cosmológico, religioso, teológico, ela é parte dessa totalidade de conexões. Qualquer desequilíbrio numa parte dessa totalidade totalidade não quer dizer um todo, mas quer dizer que é uma rede em que tudo está ligado de alguma forma, de maneira mais simples ou de maneira mais complexa , qualquer problema, vai acarretar problemas nessa rede toda.

As pessoas do candomblé dizem isso, é uma coisa recorrente. Os candomblés cada vez se tornam mais urbanos, quando os terreiros estão cada vez mais próximos dos centros da cidade, uma das coisas que eles advertem é para o risco da falta de terra. Eles usam essa expressão: “está faltando terra, só tem cimento aqui”. Como não tem terra, não tem árvore, não tem flores, não tem [bichos]. Isso é respeito à natureza, mas não é respeito à natureza no mesmo sentido que a ecologia ocidental propõe, que o movimento ecológico ocidental propõe. O que o movimento ecológico propõe é uma espécie de teoria, uma ideologia, não tem nada pejorativo nessa expressão. Mas uma ideologia é uma produção de alguém que já está sofrendo os efeitos daquela destruição que ela mesma promoveu, no final das contas. Aí irrompem mecanismos de defesa contra isso. Mas as religiões de matriz africana, como os povos indígenas têm uma concepção que leva a sério o ambiental, porém ela não se baseia em uma separação entre pessoas e natureza. Vou usar uma expressão que o Ailton Krenak8 usou há mais de 20 anos, quando ele diz assim “o Pierre Clastres disse que as sociedades indígenas são sociedades contra o Estado”. Aí ele fala assim: “isso pra nós não é nenhuma ideologia. Isso pra nós não é nenhuma teoria. Nós somos naturalmente contra o Estado”. Quando ele fala “naturalmente”, isso tem que ser entendido corretamente.

Quer dizer que o modo de vida desses grupos, os seus modos de existência e o Pierre Clastres (1974) mostrou isso , as suas formas de organização são contra o Estado intrinsecamente. Não é uma teoria contra o Estado. Isso nós temos que fazer, porque nós sofremos o Estado há sei lá quantos milênios. A gente é obrigado, para combatê-lo, a criar uma teoria para combatê-lo. Eu acho que é a mesma coisa que acontece em relação ao meio ambiente, seja nas sociedades indígenas, seja no caso das religiões de matriz africana. Todo esse debate que está tendo agora de desmantelamento dos ministérios de proteção ambiental e dos povos originários, a coisa que está sendo apontada é isso: que, quando se diz que os indígenas são guardiões da floresta, isso também não é nenhuma ideologia. É que o modo de vida deles implica naturalmente a preservação dessas coisas. Eles não precisam ter ideologia sobre isso. Quem precisa ter ideologia sobre isso somos nós. Eu acho que o modo de vida, o modo de existência, as concepções de prática religiosa que as religiões de matriz africana têm implicam naturalmente que tem que haver um certo equilíbrio nas relações com a natureza. E aí, é claro que as pessoas, respondendo a uma pressão externa, desenvolvem essas práticas, como a Mariana descreveu, de lixo religioso (Renou, 2011).

Isso pega bem num certo sentido. Não acho que seja nada demais, mas eu não acho que isso seja o fundamento da questão. Ficar aí, de novo, é querer ser tolerante. E vai ter uma hora que alguém vai dizer “daí, você não pode passar não”. Mas esse limite não vai ser um limite propriamente religioso. Vai ser um limite imposto de fora. Eu participei uma vez de uma conversa junto com meu amigo lá de Ilhéus, do terreiro Matamba Tombeci Neto, o Marinho Rodrigues. A gente participou de um encontro numa universidade lá no sul da Bahia, em que, na hora das perguntas, alguém e eu acho que a pessoa estava provocando perguntou sobre o lixo deixado pelas obrigações de Iemanjá no mar, que aí você vai para o mar e faz aquele monte de oferendas e tal. O Marinho, compreensivelmente porque ele está dentro de uma batalha e não quer perder , falou exatamente disso, dos esforços dos terreiros para combater isso, usar materiais biodegradáveis etc. Eu não consegui resistir, pedi a palavra e comentei exatamente o seguinte: olha, eu acho que tudo isso que o Marinho falou é muito importante e tal, mas eu queria saber se alguém aqui realmente acha que a poluição dos oceanos vem das oferendas a Iemanjá. Entendeu? Porque, obviamente, é isso que está em jogo. Quer dizer, alguns pratos que as pessoas levam ao mar uma minoria de pessoas que praticam isso poucas vezes por ano não é a causa da poluição dos oceanos.

Então, prestar atenção nisso, botar o foco aí, assim como botar o foco nos tais maus-tratos, isso é racismo religioso. Assim, para mim, isso parece um álibi, uma desculpa que, enfim, é característica do racismo brasileiro em que você pratica o racismo, sem falar em raça. Então, você pode ver que nesses discursos a palavra “raça” não aparece, ninguém fala “raça”, ninguém fala “religião negra”, nada disso. Tudo é de uma assepsia absoluta. Mas, se você prestar atenção nas consequências e não nos princípios, que são sempre grandiosas, você vai ver que é racismo religioso mesmo e que, para combater o racismo religioso, não só a tolerância não basta, como ela é parte do racismo religioso. E voltar nesse slogan que está sendo usado “não queremos tolerância, queremos respeito” é isso que a gente quer. E “respeito” é uma palavra ótima, porque não significa que a pessoa tem que fazer como você. Não significa que a pessoa tem que acreditar no que você acredita, no que você faz. Significa respeito. Respeito tem uma certa noção de distância. Você me deixa em paz. A não ser que eu faça uma coisa ilegal, uma coisa que ameace a existência dos outros, o que eu nunca vi as religiões de matriz africana fazerem. Eu vejo que quem faz isso são os outros grupos religiosos que as acusam e os grupos não religiosos que as acusam também.

LMA: Marcio, para finalizar, uma última questão. Como você pensa o lugar da antropologia nesses debates? Lembrei agora de uma afirmação que você fez em uma entrevista, em que você falava em relação a uma antropologia da desaceleração, capaz de criar uma linguagem de comunicação mais simétrica. E, como condição, digamos, para propor um diálogo que não seja colocado a partir de uma posição de superioridade. Pensando também, nesse diálogo, a possibilidade de identificação do equívoco e a possibilidade de entrar numa trajetória de aprendizagem, resultado desse diálogo. E, fazendo um vínculo com o tema que estamos abordando aqui, a possibilidade de pensar esse diálogo e essas práticas, não a partir de um universal, por exemplo. Como você vê o papel da antropologia nesse debate?

MG: então, eu acho que esse debate em particular serve também para pensar o que sobrou para a antropologia como um todo no mundo atual. E, no “mundo atual”, eu quero dizer desde a descolonização, desde os movimentos de descolonização, eu acho que a antropologia tem um problema na sua mão. Mas eu não sou dos que acham que isso significa simplesmente que a antropologia é uma prática tão vergonhosa que não deva mais ser praticada. Eu acho que, na história da antropologia, eu já escrevi isso várias vezes, congenitamente, ela tem um quê esquizofrênico. Ela aparece como uma disciplina totalmente ocidental para falar dos outros, para explicar os outros e certamente para explicar em termos propriamente ocidentais, universalistas e discriminatórios. Eu diria que 90% da prática antropológica e talvez 95% da teoria antropológica estão ligadas a isso. Mas tem um detalhe que, a partir de um certo momento, já no século 20 e tal, inventou-se, por alguma razão, que, para fazer isso, os praticantes de antropologia tinham que conviver com as pessoas de quem eles estavam falando. Não dava mais para fazer como se fazia no século 19. E aí acho que eles foram colocados e eles são colocados, cada um de nós é colocado a cada instante nessa posição, numa bifurcação, numa encruzilhada, a gente pode dizer, que exige uma escolha. Daí você vai lá, convive com as pessoas, escuta o que as pessoas dizem, tenta compreender o que elas estão falando, tenta traduzir o que elas estão falando para os outros que não foram lá, que é mais ou menos isso que um etnógrafo e uma etnógrafa fazem, correto? Mas, ao mesmo tempo, na hora que você vai fazer a sua antropologia, você trata isso, a gente podia usar até aquela velha fórmula que usamos há pouco, com intolerância ou com tolerância? Esse é o nosso limite. Ou seja, intolerância é dizer “olha, esses caras pensam isso, isso e isso” ou “veja bem”, “você dizer assim isso é um absurdo”. Isso é cada vez mais raro na antropologia, embora fosse dominante. O que eu temo é que isso seja substituído apenas pela posição tolerante. Um exemplo clássico de antropologia: você pode descrever uma cosmologia como a das religiões de matriz africana e depois vai dizer que, na verdade, aquela cosmologia é apenas uma representação da estrutura social. De novo, aquela velha história, porque a estrutura social existe. Essa cosmologia é pura ficção. Assim como animal existe… Você é tolerante. Você fala “olha, eles praticam isso tudo. Isso é muito esquisito”, mas no fundo não é disso que eles estão falando. Eles estão realmente falando é da vida social ou das estruturas de poder essas nós acreditamos que existem, mas as outras coisas a gente não acredita que existem. Na literatura sobre religiões de matriz africana, isso virou dominante a partir da década de 1970, em que as pessoas diziam que, por trás de tudo que era feito, estavam interesses políticos, sociológicos e micropolíticos muito precisos, aos quais você dá direito de existência, ao mesmo tempo que as divindades através das quais essas coisas são veiculadas são consideradas como inexistentes. Evidentemente, são símbolos, imaginações e ilusões. Se você for muito tolerante, você vai falar “símbolo”, que é uma palavra nobre. Mas, do meu ponto de vista, o plano da antropologia é o do respeito. Não é nem da tolerância nem da intolerância. Essa frase que a gente usa muito: “levar a sério”. “Levar a sério” quer dizer respeitar. “Levar a sério” não é só uma fórmula verbal. Ou seja, como traduzir para termos que pessoas que não conviveram com as pessoas que nós convivemos, o que elas estão dizendo de tal modo que aquilo que elas estão dizendo seja efetivamente respeitado. A palavra “crer” é muito ruim, não é que [essas pessoas] acreditam, elas vivem. A existência delas implica a realidade das divindades, é nesse sentido que eu quero dizer. Elas se sentem participantes dessa rede da qual fazem parte os outros humanos, os animais, mas as divindades também. Como traduzir isso para uma pessoa que não conviveu? Nós sabemos como é que elas fazem isso, como é que elas vivem, que elas não são loucas, elas não são iludidas, elas não são nada disso. Elas são geniais. Mas como é que você traduz isso? Eu acho que a prática etnográfica entra exatamente nesse ponto. Eu escolhi esse texto sobre oferenda para fechar esse livro que eu publiquei agora, um pouco porque eu tive a sensação de que talvez seja o meu esforço mais bem-sucedido de fazer isso (Goldman, 2023).

Ou seja, de pegar um caso relativamente cabeludo como esse, que ofende o que o José Carlos dos Anjos chama de “sensibilidade colonial” (Anjos, 2015). Acho que essa é uma expressão muito importante. A sensibilidade colonial, tanto na sua versão cristã e evangélica, quanto na forma de uma sensibilidade moderna que também é colonial, no sentido de que seu ponto de vista se apresenta arrogantemente como “verdadeiro” e como obrigatório para os outros. Então, é pegar esse caso que é tão ofensivo, ameaçador para a sensibilidade colonial e tentar colocar em termos que circulam no Ocidente, não nos termos que eles colocam, porque esses são imediatamente rechaçados. Colocar isso de um modo que obviamente nunca vai evitar, mas que exija respeito também. Quer dizer, você traduzir isso de uma maneira em que essa tradução diga, no fundo, essa frase: “eu não quero nem intolerância nem tolerância, o que eu quero é respeito”. Eu acho que é isso que sobra para a antropologia hoje em dia, no final das contas. Esse negócio do diálogo respeitoso, não hierárquico e simétrico, ele, no fundo, é isso, é um diálogo, mas é um diálogo que o etnólogo vai retransmitir. E o que a gente está vendo hoje é que tem cada vez mais pessoas desses próprios grupos que são capazes de fazer isso, o que faz com que não seja necessária a intervenção de uma outra figura, ou também pode ser, eu não tenho nenhum problema em relação a isso.

Mas, eu acho, nas bifurcações do que pode ser a antropologia hoje, que essa é para mim a única vertente digna, digamos assim. As outras eu acho que são vergonhosas. E “ir devagar”, “desacelerar”, que é uma expressão da Stengers, tem a ver com isso (Stengers, 2013). A cada momento você tem que parar para pensar, como eu estava falando. Isso não é recair na história da tolerância? Isso não é, de novo, faltar com respeito? Esses valores eu acho que têm que ser acionados como valores epistemológicos, de alguma maneira. Eles não são apenas morais. Se eu entendo bem o que a Isabelle Stengers faz, essa é a proposta dela, que essas coisas que em geral passam por valores morais, como o de ter que respeitar os outros, que sempre é muito abstrato, quer dizer, enquanto praticante de antropologia, o meu problema é como usar isso para poder pensar melhor. E eu acho que, nesse caso, as oferendas são um caso muito bom para esse exercício. O canibalismo, por exemplo, é excelente para você fazer isso; os dois temas são percebidos como fortemente ofensivos para a sensibilidade colonial, termo que eu acho que o José Carlos teve a felicidade de [formular], justamente, a propósito de um debate sobre oferendas.

Referências

Anjos, J. C. (2015). Os sentidos do sacrifício nas religiosidades afro-brasileiras. https://sul21.com.br/opiniao/2015/03/os-sentidos-do-sacrificio-na-religiosidade-afro-brasileira-do-nucleo-de-estudos-da-religiao-da-ufrgs/

Clastres, P. (2003/1974). A sociedade contra o Estado. Cosac & Naify.

Goldman, M. & Flaksman, C. M. (2019, 17 de abril). Tentativa de criminalizar práticas de sacrifício religioso é preconceituosa. Época. https://oglobo.globo.com/epoca/tentativa-de-criminalizar-praticas-de-sacrificio-religioso-preconceituosa-artigo-23606318

Goldman, M. (2015). Dez gritos sobre a campanha contra as religiões de matriz africana. https://www.facebook.com/nucleodeantropologiasimetrica/posts/dez-gritos-sobre-a-campanha/903091399747254

Goldman, M. (2023). “Das oferendas nas religiões de matriz africana”. Em Do outro lado do tempo: sobre religiões de matriz africana (pp. 216-242). 7Letras.

Oro, A. P., Tavares de Carvalho, E. & Scuro, J. (2017). O sacrifício de animais nas religiões afro-brasileiras: uma polêmica recorrente no Rio Grande do Sul. Religião & Sociedade, 37(2), 229-253. https://doi.org/10.1590/0100-85872017v37n2cap09

Renou, M. (2011). Oferenda e lixo religioso: como um grupo de sacerdotes do candomblé angola de Nova Iguaçu “faz o social” [dissertação de mestrado]. Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Serra, O. (1995). Águas do Rei. Vozes.

Stengers, I. (2013). Une autre science est possible! Manifeste pour un ralentissement des sciences. Les Empêcheurs de Penser en Rond; La Découverte.

Notas

* Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Departamento de Antropologia, Museu Nacional (MN), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Seus interesses de pesquisa incluem antropologia das religiões afro-brasileiras, antropologia da religião, antropologia política e teoria antropológica. É autor dos livros Do outro lado do tempo. Ensaios sobre as religiões de matriz africana (2023), Mais alguma antropologia. Ensaios de geografia do pensamento antropológico (2016), Como funciona a democracia. Uma teoria etnográfica da política (2006), Razão e diferença. Afetividade, racionalidade e relativismo no Pensamento de Lévy-Bruhl (1994). Foi professor visitante na Universidade Federal de Minas Gerais e na Universidade de São Paulo, bem como na Universidade de Cabo Verde, na Universidade de Chicago e na Universidade de Oxford. marcio.goldman@gmail.com

** Professor substituto no Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil. Seus tópicos de pesquisa incluem religiões afro-americanas, movimentos pedagógicos e relações étnico-raciais, relações étnico-raciais e ensino superior, tradução intercultural. lgmezaa@gmail.com

1 “Terreiro” é o templo, o lugar onde acontecem as cerimônias principais e a vida cotidiana da comunidade religiosa.

2 Sacerdotisas das variadas modalidades de religiões de matriz africana.

3 “Jogo de búzios” é um procedimento divinatório que é feito para conhecer a vontade das divindades.

4 Corte constitucional.

5 Uma segunda iniciativa deste tipo foi apresentada dez anos depois pela também deputada estadual evangélica Regina Becker Fortunati, que naquele momento integrava o Partido Democrático Trabalhista (PDT [Oro et al., 2017]). Iniciativas similares foram apresentadas noutros estados. Em 2013, foi o vereador Marcell Moraes, filiado ao Partido Verde (PV), quem apresentou o projeto à Câmara de Vereadores de Salvador.

6 “Povo de santo”, nome com o qual são conhecidos os praticantes de religiões de matriz africana no Brasil, como o candomblé.

7 Grande empresa produtora e comercializadora de alimentos (carne bovina e avícola) no mercado brasileiro.

8 Intelectual, filósofo, ativista do movimento socioambiental e indígena brasileiro do povo Krenak, grupo presente no estado brasileiro de Minas Gerais.