Entre antagonismos e fantasias: a identificação política de estudantes de camadas populares com Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais brasileiras de 2018 e 2022

Luciana Silvestre Girelli e Igor Suzano Machado

Recebido: 30 de março de 2025 | Aceito: 9 de julho de 2025 | Modificado: 1º de agosto de 2025

https://doi.org/10.7440/res94.2025.08

Resumo | Este artigo aborda o processo de identificação política de estudantes de cursos técnicos vinculados ao ensino médio, na modalidade da educação de jovens e adultos, com o candidato Jair Messias Bolsonaro, nas eleições presidenciais brasileiras de 2018 e 2022. Objetivou-se demonstrar de que maneira sujeitos de camadas populares, marcados pela descontinuidade no processo de escolarização e pela vulnerabilidade laboral, optaram por um candidato de extrema direita. Os dados apresentados foram coletados por meio de entrevistas individuais, não diretivas e semiestruturadas, grupos focais e observação de diálogos em aplicativos de mensagens, em 2022 e 2023. Para analisar os resultados, adotou-se como perspectiva teórico-metodológica a Teoria do Discurso da Escola de Essex. Partindo das categorias de identificação política, antagonismo e fantasia, concluiu-se que os estudantes foram mobilizados por pautas de cunho moral, sobretudo a defesa da família, as quais se articularam, antagonicamente, em torno do combate a um inimigo comum: o Partido dos Trabalhadores (PT) e a esquerda. Do ponto de vista ideológico ou fantasmático, verificou-se que os estudantes foram envolvidos nesse regime de crenças mediante forte mobilização de afetos, como medo, frustração e ressentimento, que se manifestaram, entre outros motivos, em virtude da não inserção desse público em determinadas políticas de inclusão social dos governos petistas. Em termos de originalidade, o texto apresenta como esses sujeitos de camadas populares, a partir de seu cotidiano, atribuíram sentido à proposta da extrema direita brasileira e exemplifica como a estratégia digital de desintermediação entre líder e povo foi fundamental para o êxito do bolsonarismo no grupo em questão.

Palavras-chave | antagonismo; eleições presidenciais; fantasia; identificação política; Jair Bolsonaro; Proeja

Entre antagonismos y fantasías: la identificación política de los estudiantes de clases populares con Jair Bolsonaro en las elecciones presidenciales brasileñas de 2018 y 2022

Resumen | El artículo aborda el proceso de identificación política de estudiantes de cursos técnicos vinculados a la escuela secundaria, en la modalidad de la educación de jóvenes y adultos, con el candidato Jair Messias Bolsonaro, en las elecciones presidenciales brasileñas de 2018 y 2022. El objetivo del estudio fue demostrar cómo sujetos de las clases bajas, marcados por la discontinuidad en el proceso escolar y por la vulnerabilidad laboral, optaron por un candidato de extrema derecha. Los datos presentados se recopilaron a través de entrevistas individuales, no directivas y semiestructuradas, grupos focales y observación de diálogos en aplicaciones de mensajería, en 2022 y 2023. Para analizar los resultados, se adoptó la teoría del discurso de la Escuela de Essex como perspectiva teórico-metodológica. Partiendo de las categorías de identificación política, antagonismo y fantasía, se concluyó que los estudiantes estaban movilizados por agendas morales, especialmente la defensa de la familia, que se articulaban, antagónicamente, en torno a la lucha contra un enemigo común: el Partido de los Trabajadores (PT) y la izquierda. Desde el punto de vista ideológico o fantasmático, se constató que los estudiantes se vieron involucrados en este régimen de creencias a través de una fuerte movilización de afectos, como el miedo, la frustración y el resentimiento, que se manifestaron, entre otras razones, por la no consideración de este público en ciertas políticas de inclusión social de los Gobiernos del PT. En términos de originalidad, el texto presenta cómo estos sujetos de las clases bajas, a partir de su vida cotidiana, atribuyeron significado a la propuesta de la extrema derecha brasileña y ejemplifica el modo en que la estrategia digital de desintermediación entre líder y pueblo fue fundamental para el éxito del bolsonarismo en el grupo en cuestión.

Palabras clave | antagonismo; elecciones presidenciales; fantasía; identificación política; Jair Bolsonaro; Proeja

Between Antagonisms and Fantasies: The Political Identification of Working-Class Students with Jair Bolsonaro in the 2018 and 2022 Brazilian Presidential Elections

Abstract | This article examines the political identification of students enrolled in technical courses linked to secondary education, within the youth and adult education track, with Jair Messias Bolsonaro during the 2018 and 2022 Brazilian presidential elections. The study seeks to explain how members of the lower classes—marked by interrupted schooling and precarious labor conditions—came to support a far-right candidate. Data were collected in 2022 and 2023 through individual non-directive and semi-structured interviews, focus groups, and observations of conversations on messaging applications. The analysis adopts the discourse theory of the Essex School as its theoretical and methodological framework. Drawing on the categories of political identification, antagonism, and fantasy, the findings indicate that students were mobilized by moral agendas—particularly the defense of the family—constructed antagonistically around the struggle against a common enemy: the Workers’ Party (PT) and the political left. From an ideological, or “fantasmatic,” perspective, students were incorporated into this system of belief through the mobilization of powerful emotions such as fear, frustration, and resentment, fueled in part by their exclusion from certain social inclusion policies of PT governments. In terms of originality, the article demonstrates how these working-class actors, through the lens of their everyday experiences, ascribed meaning to the Brazilian far-right project and shows how the digital strategy of disintermediation between leader and people was central to the consolidation of Bolsonarismo within this group.

Keywords | antagonism; fantasy; Jair Bolsonaro; political identification; presidential elections; Proeja

Introdução

O início da década de 2010 foi marcado pela esperança de democratização do mundo. A inevitabilidade histórica da democracia prevista por Tocqueville ([1835] 2005) parecia se materializar na onda de revoltas da chamada “Primavera Árabe”, e o consenso teórico em torno das instituições da democracia liberal se mostrava cada vez mais sólido. Entretanto, outro movimento em sentido contrário, marcado pela ascensão de regimes políticos “iliberais”, mostrou-se mais determinante que a suposta onda de democratização, e as reflexões sobre como aprofundar as dimensões representativas, participativas e deliberativas da democracia cederam espaço a discussões sobre a política populista e sobre as formas de colapso dessa democracia (Levitsky e Ziblatt 2018).

O fenômeno foi observado em países como Argentina, Brasil, Estados Unidos, Hungria e Turquia. Apesar de muito diferentes entre si, tais países compartilham um contexto similar de tentativa de desmantelamento democrático, patrocinada por um tipo de força política específica, classificada ideologicamente como de direita — por ser apologista da economia capitalista e de uma moral conservadora — e como populista — em relação ao formato de seus discursos, que opõem o povo a algum inimigo (Laclau 2009). Quanto aos meios que utilizam para propagar suas ideias, destaca-se o uso intensivo das mídias digitais.

As análises acerca da atuação dessa nova direita de cariz potencialmente antidemocrático não podem obscurecer a importância de compreender uma dimensão propriamente democrática do fenômeno. Afinal, ainda que, ao assumirem os governos, os próceres dessa força política provoquem fissuras no edifício da democracia liberal, podendo fazê-la ruir, é marcante o apoio popular obtido por seus candidatos. Além disso, sua chegada inicial ao poder não tem sido marcada por golpes de Estado, mas por eleições democráticas. Dessa forma, se essa direita é compreendida como populista (Lynch e Cassimiro 2022), o processo de identificação entre o líder político e as demandas populares da maioria do eleitorado precisa ser compreendido em maior profundidade.

Diante desse cenário, este artigo se propõe a analisar a formação da identificação política de sujeitos de camadas populares em relação ao candidato Jair Messias Bolsonaro nas eleições presidenciais brasileiras de 2018 e 2022. Trata-se, especificamente, de estudantes vinculados a cursos do Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Proeja), do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo, campus Vitória, Brasil. Esse programa tem a finalidade de atender sujeitos acima de 18 anos que não conseguiram concluir o ensino médio e que buscam oportunidades de inserção no mundo do trabalho. É uma política de inclusão social de jovens e adultos com trajetórias escolares descontínuas e que tem como base de ação a Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica (Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica 2007).

Pesquisas com esse recorte de público são relevantes para compreender a adesão de camadas populares a políticos ou candidatos de extrema direita, pois revelam a forma como transformações sociais afetam de maneira drástica a vida moral dos pobres e a forma como eles respondem a esses processos (Pinheiro-Machado 2016). Nesse sentido, é fundamental estabelecer conexões entre seu cotidiano e os grandes acontecimentos políticos, como será feito neste artigo.

Parte-se da premissa de que pessoas de baixa renda não são simplesmente manipuladas ou vítimas passivas de processos históricos (Pinheiro-Machado 2016) e que os eleitores de Jair Bolsonaro não devem ser vistos como sujeitos histéricos e paranoicos, como já apontaram pesquisas realizadas sobre o perfil desse público (Gallego 2018; Kalil 2018). De acordo com Rocha (2018, 52), “a adesão e o sucesso dessa militância tendem a passar pela consolidação de laços e identidades comuns, mobilização de afetos e uso de redes sociais. Em determinadas circunstâncias, tais fatores foram mais importantes do que a posse de recursos abundantes”.

Com o intuito de demonstrar tais conexões, são analisados dados qualitativos oriundos de uma pesquisa de doutorado (Girelli 2024), que investigou a formação da identificação política de estudantes do Proeja nas eleições de 2018 e 20221. O principal objetivo dessa pesquisa consistiu na compreensão dos fatores que motivaram a adesão às ideias de Jair Bolsonaro em sua primeira disputa presidencial, bem como a manutenção do apoio ao candidato no pleito seguinte.

No que se refere aos critérios de seleção dos participantes, foram escolhidos estudantes matriculados em cursos do Proeja, de 2018 a 2022, cuja opção de voto em Jair Bolsonaro tenha sido ostensivamente publicizada no ambiente escolar e também fora dele, como nas redes sociais. As indicações foram feitas por professores que lecionaram para os discentes no período analisado, pela equipe pedagógica responsável por seu acompanhamento e por estudantes informantes, em geral, líderes de turma. Estes últimos deveriam apresentar perfis diversos de raça e etnia, gênero e orientação sexual, faixa etária, religião e engajamento em organizações sociais2.

Os nove discentes eleitores de Bolsonaro3 que compuseram o corpus empírico da pesquisa cursaram o ensino médio na modalidade de educação de jovens e adultos em cursos técnicos de Guia de Turismo, Metalurgia e Segurança do Trabalho. Distribuíram-se entre cinco mulheres e quatro homens, e suas idades variaram de 22 a 64 anos. Em relação à raça e à etnia, quatro declararam-se brancos e cinco disseram ser pardos ou pretos. Sobre os locais de residência, a maioria declarou viver em bairros de periferia da Região Metropolitana de Vitória (Espírito Santo, Brasil). Quanto à ocupação remunerada, os estudantes exerciam uma ou mais atividades no setor de serviços, tanto em condições formais quanto informais, bem como na área industrial, em empresas terceirizadas. Entre os trabalhos mencionados, destacam-se: operador de telemarketing; vendedora e auxiliar de escritório; operadora de equipamentos e instalações; açougueiro; operador eletromecânico; do lar; diarista e camareira de hotel; comerciante e fiscal de rua da prefeitura; confeiteira; técnica de enfermagem (cuidadora de pessoas); e aposentada. Suas rendas familiares são compostas, em sua maioria, por valores de até três salários-mínimos.

Do ponto de vista religioso, quatro estudantes declararam-se evangélicos; dois, católicos — um tradicionalista e outro não praticante; dois cristãos, mas sem religião específica; e um ateu ou agnóstico. Em relação à participação em organizações sociais, a maioria relatou não possuir envolvimento. Contudo, entre os que participavam, foram citados o Movimento Brasil Livre (MBL), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o Partido Liberal (PL) e a igreja que frequentavam. Em termos político-ideológicos, os discentes declaram-se majoritariamente de direita, com variações como centro-direita, direita liberal e direita conservadora — esta última predominante no grupo. Também foram mencionadas outras orientações, como centro liberal, “patriota” e “pela família”.

A coleta de dados foi realizada em 2022 e 2023 e combinou a utilização de três técnicas: (i) entrevistas individuais diretivas, que abordaram a trajetória de vida dos estudantes, e semiestruturadas, estabelecidas a partir de um roteiro orientador; (ii) grupos focais, realizados de forma on-line e presencial; e (iii) observação a partir de diálogos com os participantes por aplicativo de mensagens. Do ponto de vista da análise dos dados, adotou-se a perspectiva teórico-metodológica da Teoria do Discurso da Escola de Essex, cujos principais expoentes são Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Por esse viés, o discurso é entendido como “uma consequência de articulações concretas que unem palavras e ações, no sentido de produzir sentidos que vão disputar espaço no social” (Mendonça e Rodrigues 2014, 50).

Em termos de organização, o texto está dividido em quatro seções, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira, é apresentada a concepção de identificação política, bem como os conceitos de antagonismo e de fantasia, fundamentais para a análise dos dados. Na segunda seção, é mostrado como os principais elementos de identificação com o candidato Jair Bolsonaro se articularam em torno do combate ao inimigo comum, o PT e a esquerda, vistos como responsáveis pela desestruturação das famílias, elemento central para esse público.

Já na terceira seção, indicam-se as motivações fantasmáticas que mobilizaram os estudantes a fim de que mantivessem a crença na ordem política capitaneada pelo político de extrema direita, sobretudo pelo acionamento de afetos. Na quarta e última, analisa-se como a estratégia de atuação digital do candidato, marcada, entre outros pontos, pela desintermediação entre líder e povo (Cesarino 2022), foi decisiva para o alcance desse êxito. Ao final, pretende-se demonstrar como a prática discursiva de Jair Bolsonaro fez sentido para esse grupo de origem popular, constituindo-se, em sua visão, como alternativa política para o país.

“Voto em Bolsonaro, mas não sou bolsonarista”: identificação política, antagonismos e fantasia

A afirmação que intitula esta seção foi quase unânime entre os estudantes da pesquisa e exemplifica a concepção teórica com a qual se trabalhou acerca das identidades políticas: elas não são fixas nem imutáveis e modificam-se conforme cada momento histórico. A estudante Elisângela4, 43 anos, do lar, disse que mudou sua perspectiva política da esquerda para a direita, mas admite que a posição atual é passível de alteração: “Eu já fui de esquerda, hoje sou de direita, mas nada impede que eu mude. [...] Nesse momento, sou de direita, Deus, pátria, família. Tem coisa que a direita faz que eu não concordo? Tem. Mas ainda assim eu não mudei minha posição, ainda estou de direita” (20 de setembro de 2022, Vitória, Espírito Santo, Brasil).

Narrativas como a de Elisângela podem ser compreendidas à luz do referencial teórico laclauniano, que critica a preponderância da classe social em relação a outras dimensões que possam influir na constituição das identidades sociais e políticas (Laclau 2000; Laclau e Mouffe 2015). De acordo com essa perspectiva, não existe um princípio subjacente à ordem social, já que esta não possui uma essência. A sociedade, na leitura de Mendonça e Rodrigues (2014, 49) a respeito da obra de Laclau e Mouffe, é concebida a partir da lógica do discurso, entendido como “uma categoria que une palavras e ações, que tem natureza material e não mental e/ou ideal”.

Desse modo, não há um alinhamento necessário entre a condição socioeconômica dos sujeitos e suas identificações políticas. Nesta pesquisa, as desigualdades sociais que acometem os estudantes não são algo que, a priori, os tornam propensos a aderir a posições progressistas, tampouco sua aproximação com a extrema direita deve ser lida como mera manipulação ou ausência de senso crítico.

Pela visão de Laclau (2000), as identidades políticas são formadas de maneira necessariamente relacional, já que não é possível fixar-lhes um sentido absoluto na estrutura social. Elas não são óbvias nem definidas previamente, mas construídas de acordo com cada momento político. Por essa visão, a formação e as mudanças nas identidades devem ser compreendidas em virtude do deslocamento do sujeito5 no interior de um discurso, que ocorre devido à necessidade constante de preenchimento de uma falta que lhe é constitutiva (Laclau e Zac 1994). Nesse sentido, a categoria psicanalítica da identificação é considerada ponto-chave para compreender a formação das identidades políticas, pois sempre será preciso identificar-se com alguma coisa que preencha a incompletude original da existência humana.

Conceitualmente, a identificação, de acordo com Hall (2012, 106), configura-se como “um processo de articulação, uma suturação, uma sobredeterminação, e não uma subsunção” a qualquer tipo de condição específica — econômica, social ou cultural. Sob essa ótica, as identidades funcionariam como pontos de apego temporário às posições de sujeito construídas pelas práticas discursivas.

Em termos políticos, Stavrakakis (2010) aponta que a falta constitutiva pode ser preenchida por objetos socialmente disponíveis, como papéis familiares, padrões de consumo, ideais profissionais e ideologias políticas. Ele também argumenta que o preenchimento desse vazio se dá por meio da fantasia, que consiste em uma promessa ilusória, no âmbito coletivo, acerca da recuperação de um estado de harmonia, unidade e completude da vida em comunidade. Sobre esse aspecto, Glynos (2011) argumenta que a fantasia oferece certa garantia ao sujeito na medida em que proporciona proteção contra a imprevisibilidade e a contingência das relações sociais. Além disso, estrutura o desejo, fornecendo, ao mesmo tempo, um ideal e um impedimento à sua realização, o que faz com que seja composta por uma face beatífica e outra terrível. A promessa da plenitude, embora impossível de se realizar, aparece como possível para o sujeito mediante a superação de obstáculos, nomeados ou implícitos, na forma de um “outro” ameaçador.

Em disputas de projetos de poder, não raro, grupos ou pessoas são designados como inimigos, o que pode ser explicado, conforme Stavrakakis (2007), pelo fato de que a ordem social harmoniosa, criada pela fantasia, atribui a culpa pela desordem a um elemento estranho ou intruso, que pode ser estigmatizado ou mesmo eliminado para que essa ilusão mantenha sua coerência. Há uma constante criação de um “nós” e um “eles”, fundamental para o processo de identificação. Entretanto, Glynos (2011) ressalta que a fantasia, em uma análise crítica de processos sociais e políticos, não deve ser entendida como mito ou ilusão, nem deve ser usada como meio de deslegitimar uma crença ou visão de mundo, enquadrando-a como falsa ou irracional. Ela deve ser entendida como um meio de acessar a estrutura do desejo, importando menos seus conteúdos e mais o modo como os sujeitos são arrebatados por essa narrativa.

Tendo em vista esses elementos, este artigo defende que a formação da identificação política é produzida pela criação de uma fronteira interna que estabelece um corte antagônico em relação a um inimigo comum, de modo que o antagonismo se constitui como uma forma de identificação a partir de uma ameaça (Mendonça 2012). O antagonismo também opera a partir de algo “exterior” que bloqueia a constituição plena de uma identidade, entendida como “interior”. Desse modo, as escolhas de grupos sociais por determinados projetos políticos são estabelecidas a partir de uma relação de antagonismo e poder, não de maneira prévia a ela, como reitera Mendonça (2012, 207): “O antagonismo, antes de ser uma relação entre objetividades já dadas, representa o próprio momento em que elas passam a ser constituídas. Assim, antagonismo é condição de possibilidade para a formação de identidades políticas [...] e não meramente um campo de batalha que se forma entre duas forças com existências prévias”.

O autor ainda afirma que essa categoria deve ser compreendida como a percepção de uma ameaça, a qual promoverá uma identificação entre elementos, que, por sua vez, se articulará em um discurso. Esse processo de articulação está relacionado à dinâmica da lógica das diferenças e das equivalências (Laclau e Mouffe 2015), que explica o modo como demandas da população, inicialmente dispersas e sem vínculo imediato umas com as outras, passam a se agrupar contra um ponto de oposição comum, em torno de significantes que lhes dão unidade. Estes são considerados como “significantes vazios”, cujo esvaziamento é responsável por unificar uma cadeia de equivalências, simplificando o espaço político (Laclau 2009). A título de exemplificação, entre os apoiadores de Jair Bolsonaro, os termos “cidadão de bem”, “Deus”, “pátria” e “família” podem ser considerados significantes que se esvaziaram e abarcaram reivindicações diversas da população — como mais segurança, mais liberdade econômica etc. —, representando algo maior do que eles próprios, assim como a oposição a um mesmo inimigo, antagônico aos cidadãos de bem e a Deus, à pátria e à família.

Segundo Lopes e Mendonça (2013), os significantes vazios acabam por atribuir uma nova dimensão qualitativa às demandas unificadas, pois operam como pontos de identificação para todos os elos da cadeia, tornando exitoso o processo de representação coletiva. Este, embora constituído a partir daquilo que se antagoniza, pode articular também aspectos positivos de identificação, uma vez que suas operações de sentido são internas e o outro constitutivo é “externo” a seus limites. Assim, o antagonismo “tem a função de gerar um tipo específico de identificação política” (Mendonça 2012, 224), a partir da dicotomização do social.

Para exemplificar a relação entre antagonismo e identificação política, apresenta-se a justificativa do estudante Lucas, 22 anos, operador de telemarketing, para não se considerar bolsonarista a despeito do voto no candidato: “Bolsonarista é aquilo de defender o cara com unhas e dentes, né? Eu critiquei bastante coisa no governo dele em relação a 2018. [...] Mas continuo naquele argumento de que eu não quero ter um governo de esquerda de novo, porque os meus ideais não se encaixam com o pessoal de esquerda” (7 de setembro de 2022, on-line). Nesse caso, a opção do estudante vinculou-se diretamente à sua rejeição aos governos de esquerda.

A estudante Suzana, 27 anos, operadora de equipamentos e instalações em empresa terceirizada da área industrial, argumenta algo semelhante: “Não me considero bolsonarista, que é uma pessoa completamente de direita, que tem um [...] político de estimação. [...] Eu voto no Bolsonaro porque ele é o único candidato que tem força para tirar a esquerda. E porque eu gosto de algumas ideias dele também” (16 de outubro de 2022, Vitória, Espírito Santo, Brasil). Nessa narrativa, no entanto, nota-se que o recorte antagônico com ideias de esquerda justifica, em primeiro lugar, o apoio ao candidato, com quem também se estabelece uma relação positiva de identificação em alguns aspectos.

Das diferenças às equivalências: eleger o “mito” para conter o inimigo

Para compreender como as demandas dispersas dos sujeitos foram articuladas em oposição à esquerda e aos grupos progressistas, esta seção apresenta as narrativas dos estudantes. Essa articulação resultou na identificação política com Jair Bolsonaro, considerado por eles uma alternativa para o reordenamento político do Brasil.

No âmbito da lógica das diferenças, o grupo analisado destacou quatro principais justificativas para o voto em Bolsonaro. A primeira foi a defesa da economia liberal, entendida como forma de ampliar a eficiência do Estado. A segunda, a crítica às “pautas identitárias”, vistas como um modo de dividir os brasileiros. A terceira, a necessidade de medidas punitivas mais severas para enfrentar os problemas de segurança pública. Por fim, a valorização dos princípios da família tradicional como forma de superar a desordem no país — motivo mencionado com grande frequência pelos participantes.

No que se refere à pauta econômica, os estudantes disseram concordar com a redução da máquina pública e da burocracia estatal, com as privatizações e com o livre mercado, propostas defendidas por Bolsonaro. Entretanto, merece destaque a ideia da valorização do empreendedor. Por essa perspectiva, a promessa do candidato de ampliar os benefícios para os empresários é traduzida como extensível aos cidadãos comuns que ambicionam elevar seus rendimentos pelo esforço e mérito próprios, conforme explica Pedro, 33 anos, operador eletromecânico, ao justificar seu apoio ao presidenciável:

Essa questão mais da economia, né?, de tentar fazer com que o brasileiro sonhe empreender. Tipo assim, trabalha por conta própria, você consegue estar na empresa, mas não se contenta só com aquele salário que você tem. Tenta vender uma bala, um doce, um bolo, faz tricô, artesanato [...] E fazer mesmo com que a pessoa ela tente ser um empresário, né? Eu acredito que [...] a visão desse governo de “beneficiar o empresário”, mas não é só beneficiar o empresário, é fazer com que um cidadão comum que tá lá embaixo, lá da classe social, possa empreender e ter mais dinheiro, [...] viver bem de uma forma tranquila. (7 de outubro de 2022, Vitória, Espírito Santo, Brasil)

O estímulo ao empreendedorismo, compreendido como uma forma verdadeira de acreditar no potencial do pobre, articula-se, em alguma medida, com a crítica às “pautas identitárias”, percebidas como uma maneira de tratar os mais vulneráveis como “pobres coitados”, segregando-os e impedindo-os de crescer e prosperar. Nesse cenário, Bolsonaro é visto como o candidato que confrontou esse discurso, visto como uma forma estereotipada de classificar a humanidade.

O estudante Eduardo, 30 anos, açougueiro, afirmou que estava cansado do discurso do politicamente correto quando optou por Bolsonaro em 2018 e viu no candidato uma forma de confrontar essa agenda política: “Muita gente ficou meio chocada com as ideias de proteger determinados grupos, quando, na verdade, deveríamos olhar para o ser humano em si, ao invés de olhar para cores, de pensar em seres humanos como seres que são negros, que são brancos, estereótipo” (6 de setembro de 2022, Vitória, Espírito Santo).

Em relação ao tema da violência e da segurança pública, há vários relatos de situações de insegurança vivenciadas pelos estudantes ou por conhecidos que os fizeram optar por um político que apresentasse medidas mais rígidas nessa área. A estudante Vanda, 46 anos, diarista, demonstrou imensa insatisfação com os assaltos de que foi vítima, nos quais foram roubados os aparelhos eletrônicos que tinha ganhado da filha residente nos Estados Unidos.

Para solucionar essas questões, os discentes indicaram medidas mais severas e punitivas para os que cometem delitos, como a redução da maioridade penal. Também defenderam a ampliação do porte de armas para os cidadãos, em consonância com as propostas do candidato. Além disso, surgiu, nas narrativas, a contestação à perspectiva de que “bandido é coitado”, atribuída aos militantes dos direitos humanos e à esquerda. Esse posicionamento apareceu no relato de Suzana: “Não sei de onde vocês tiraram isso que bandido é coitado. Coitado é as colegas da minha mãe que sai daqui nove horas da noite pra descobrir que não pode entrar dentro de casa porque vagabundo lá do morro expulsou ela de casa” (6 de maio de 2022, Vitória, Espírito Santo, Brasil).

Esse cenário de insegurança e desordem, cuja solução é depositada em medidas punitivas mais duras, é compreendido como oriundo de uma grave crise moral, resultante da desestruturação e decadência das famílias brasileiras. Suzana, apesar de ferrenha defensora do punitivismo, afirmou que os governos e a polícia têm poder limitado na resolução das questões de violência, pois o problema de fundo é a educação que vem de casa:

O principal problema é a educação, só que eu não digo a educação em sala de aula [...] É família mesmo, [...] porque se você for ver a maioria esmagadora, na parte de segurança, você tem pais que não souberam educar os filhos, que vai tendo um filho atrás do outro sem mesmo ter como sustentar. Fala “ah, mas o governo sustenta”, não sei, criam as crianças no meio da miséria. Não cria direito, cria na base da violência. Então, uma pessoa dessa vai ficar violenta. (6 de maio de 2022, Vitória, Espírito Santo, Brasil)

A educação moral, na visão desses estudantes, depende de uma família bem estruturada, pauta defendida por Jair Bolsonaro. Essa temática, que apresenta diversas nuances e é central para o público deste estudo, abrange não apenas os estudantes evangélicos — embora assuma maior radicalidade entre eles —, mas também se estende aos eleitores jovens e àqueles que se consideram de direita liberal.

Em primeiro lugar, a família é compreendida como núcleo de sustentação econômica e emocional, bem como de segurança e estabilidade social: “A família, querendo ou não, vai ser base de muita coisa na vida [...]. A gente crescer pensando que se acontecer uma coisa, um problema, eu tenho o meu pai ou a minha mãe. Eu tenho meu irmão pra me apoiar, que vai ser minha base” afirmou Lucas (7 de setembro 2022, on-line). Já Ronaldo, 50 anos, comerciante, complementou: “Família é a base de tudo. Sem a sua família ali, você não consegue sobressair, você não consegue ir a lugar nenhum. [...] E acho que o Bolsonaro defende muito esse conceito de família” (10 de maio de 2022, Vitória, Espírito Santo, Brasil).

A maior parte dos estudantes acredita em um modelo específico de família, a tradicional, composta pela união de um casal heterossexual, vista como capaz de dar estabilidade e equilíbrio à sociedade, conforme os depoimentos de Elisângela e Eduardo, respectivamente: “Eu aprendi que Deus criou o homem e a mulher. Ele não criou dois homens, ele não criou duas mulheres” (20 de setembro de 2022, Vitória, Espírito Santo); e “Os heterossexuais complementam um ao outro [...]. E a vida só começa através desse tipo de relacionamento, [...] ele gera uma vida, ele tem uma importância muito mais notável, né?” (6 de setembro de 2022, Vitória, Espírito Santo, Brasil).

A perturbação nesse status de família é atribuída por muitos participantes aos novos arranjos familiares, sobretudo de casais homoafetivos, considerados “mundanos” e distantes da “família de Deus”. Ainda sobre essa temática, todos os estudantes afirmaram respeitar os relacionamentos das pessoas que são LGBTQIAPN+. Entretanto, muitos acreditam que suas manifestações afetivas devam ser restritas ao espaço privado, uma vez que a ocorrência em locais públicos soa como atitude impositiva, afrontosa e desrespeitosa, como explicita Pedro:

As leis do Brasil permitem que aconteça isso, então eu respeito. Eu não vou julgar a pessoa por ela ter um relacionamento homoafetivo. Mas eu acredito que também eles não podem obrigar a sociedade toda a ser assim. Imagina, no futuro, ser heterossexual cafonice? [...] Ser cafona, ser ultrapassado [...]. Porque do jeito que a sociedade vai indo e as pessoas se impõem, né? As pessoas elas tomam aquilo ali como uma verdade. Mas vamos concordar que não é uma verdade. (7 de outubro de 2022, Vitória, Espírito Santo)

O receio de que crianças possam ser influenciadas em sua orientação sexual também justificou a crítica à exposição pública de casais homoafetivos, assim como as adoções infantis realizadas por casais do mesmo sexo e o ensino de questões de gênero nas escolas. Além disso, o voto em Jair Bolsonaro foi considerado seguro no sentido de impedir que pautas favoráveis aos direitos reprodutivos das mulheres, como a legalização do aborto, obtivessem aprovação.

As demandas diferenciais apresentadas pelos estudantes para votar em Bolsonaro articularam-se, antagonicamente, por meio de cadeias de equivalências, em torno do combate a um inimigo comum: o PT e a esquerda. Defender a eficiência estatal e o empreendedorismo, lutar contra o politicamente correto e criticar as pautas identitárias passou a equivaler à defesa de punições mais severas para quem comete crimes e à luta pela preservação da família contra a depravação moral, na medida em que a fronteira que estabelece o inimigo é a mesma para todos esses sujeitos.

De maneira geral, a rejeição ao PT e à esquerda foi manifestada por sua associação à corrupção e à defesa de pautas que confrontam a ideia de família, como sinalizaram Diana, 24 anos, vendedora, e Vanda, respectivamente: “Não aceito o Lula. Não consigo colocar uma pessoa com histórico de corrupção, de investigação, na presidência [...]. Não gosto de votar em branco, por isso eu votaria no Bolsonaro” (23 de setembro de 2022, on-line); e “Ele [Lula] é contra a família. Tudo pra ele tá bom, tá tudo certo” (19 de setembro de 2022, Vitória, Espírito Santo, Brasil).

Já o estudante Lucas destacou a necessidade de tirar do poder o grupo político que dominou a presidência do Brasil por muitos anos e que foi responsável pela derrocada do país: “De 2012 pra frente, foi uma crise econômica, crise cultural até [...]. E o argumento que o Bolsonaro usou em 2018 foi muito bom. Ele era aquele candidato forte, diferente, um candidato de direita que defendia, é ridículo eu falar isso: ‘Ah, vamos tirar o PT do poder, vamos metralhar os petistas’” (7 de setembro de 2022, on-line).

Os estudantes mais jovens cogitaram o voto em outros candidatos como alternativa às candidaturas petistas à Presidência da República. Entretanto, devido à baixa expressão eleitoral desses políticos, optaram por votar em Bolsonaro, o único que apresentava chances concretas de vencer a esquerda nas urnas, como demonstrou Eduardo: “Muitas pessoas viram no Bolsonaro essa figura de confrontar diretamente a esquerda. O homem queria confrontar, queria digladiar a esquerda e daí surgiu, como ele era mais impulsivo na fala, esse meme do mito. Ele é o mito, né? [...] Então eu fui nele, principalmente porque eu não queria o PT no poder novamente” (6 de setembro de 2022, Vitória, Espírito Santo, Brasil).

É interessante observar que as justificativas de voto em Jair Bolsonaro nas eleições de 2022 não se diferenciaram muito das apresentadas em 2018, em que pese a experiência concreta de um mandato presidencial exercido por esse candidato. Entre os participantes desta pesquisa, não houve alteração de voto no segundo turno dos pleitos nem demonstração de arrependimento. Entretanto, mencionou-se o chamado “voto crítico”, por meio do qual muitos eleitores reconheceram as falhas do então presidente, mas optaram por deixá-las em segundo plano, tendo em vista a necessidade de impedir, novamente, a retomada do poder pela esquerda no país, como afirmou Lucas: “Em 2022, eu estou votando nele porque eu não quero governo de esquerda, porém, eu sei o que ele já fez e eu não concordo com bastante coisa. [...] Não vou votar satisfeito, mas eu vou votar para evitar um governo de esquerda de novo” (7 de setembro de 2022, on-line).

Diversos estudos compartilham a perspectiva de que a identificação política de parte da população brasileira com Jair Bolsonaro estabeleceu-se a partir de uma relação de antagonismo. Avelar (2021), por exemplo, ressaltou o caráter de mosaico do candidato, constituído de elementos heterogêneos que expressaram demandas gestadas ao longo de anos por parte da população brasileira. Para ele, o bolsonarismo emergiu como expressão “da incapacidade de o sistema político brasileiro representar satisfatoriamente o antagonismo” (2021, 238), sendo sua condição um lugar vazio preenchido por qualquer demanda represada ou não acolhida de modo satisfatório pelas instituições políticas do país.

Já Kalil (2018) mapeou 16 perfis distintos entre apoiadores e eleitores de Jair Bolsonaro, desdobrados a partir da figura do “cidadão de bem”. Segundo a autora, a construção de tais modelos baseou-se na identificação de diferentes dimensões mobilizadas no momento do voto, como o medo e a repulsa, direcionados, sobretudo, ao comunismo e à ideologia de gênero. Em sua visão, esses dois “inimigos” materializam no Brasil a combinação da racionalidade neoconservadora com a neoliberal, outro fator que contribui para compreender o êxito do bolsonarismo no país.

Nessa mesma linha, Cesarino (2019) argumentou que as pautas de reconhecimento E de redistribuição foram muito bem articuladas pela extrema direita brasileira, uma vez que a campanha de Jair Bolsonaro mobilizou como inimigos os principais marcadores de diferença das “políticas de identidade”, a saber, o gênero, a raça e a orientação sexual, mas sob o cuidado de demarcar uma fronteira entre os militantes desses movimentos e os “cidadãos de bem”, e não simplesmente entre mulheres e homens, brancos e negros ou heterossexuais e gays. Desse modo, aqueles brasileiros que eram atravessados por tais marcadores, mas não se afeiçoavam aos apelos das políticas de reconhecimento, como os participantes deste estudo, “puderam ter seu pertencimento mobilizado pela cadeia de equivalência do bolsonarismo, que operou com significantes vazios como ‘brasileiros’, ‘trabalhadores’, ‘cidadãos de bem’ ou ‘patriotas’” (Cesarino 2019, 541).

De maneira concomitante, segundo a pesquisadora, a frente antagonística, que atuou com foco no antipetismo e no combate à esquerda e ao comunismo, associou à militância a imagem do bandido, da corrupção, da ameaça e da elite hipócrita, a fim de criar uma rejeição à esquerda e uma atração pela extrema direita. Assim, foi possível vincular, no Brasil, tanto os defensores das pautas de reconhecimento — por meio das chamadas “políticas de identidade” — quanto os que lutam por políticas de redistribuição, à figura de bandidos e corruptores.

Antes de encerrar esta seção, é relevante aprofundar o motivo pelo qual os sujeitos desta pesquisa aparecem tão vinculados à defesa da “família”, atribuindo ao PT, à esquerda e a grupos progressistas a culpa pelo desmantelamento dessa instituição, vista como “eixo estruturante” da sociedade. Estudos que versam sobre o crescimento do conservadorismo no Brasil e no mundo, como o de Lacerda (2019), Brown (2019) e Burity (2020), apresentam, do ponto de vista macrossocial, valiosas contribuições à questão. Contudo, optou-se por indicar elementos desde uma perspectiva antropológica, lançando um olhar a partir do cotidiano dos participantes.

Considerando que os estudantes desta pesquisa são marcados por diversas desigualdades sociais, a família, nesse contexto, assume um papel fundamental. Isso porque, na esfera privada, supre funções que não são proporcionadas pelo Estado no âmbito das instituições públicas:

Num país onde os recursos de sobrevivência são privados, dada a precariedade de serviços públicos de educação, saúde, previdência, amparo à velhice e à infância, somados à fragilidade dos sindicatos e partidos políticos como instrumentos de mediação entre o indivíduo e a sociedade, [...] o processo de adaptação ao meio urbano e à vida cotidiana dos pobres, inclusive dos nascidos na cidade, é estruturalmente mediado pela família. (Sarti 2007, 52)

Desse modo, a família é, para os pobres, um núcleo de sobrevivência material e emocional, além de uma rede de laços afetivos. Entretanto, esse espaço também precisa ser compreendido como ordem moral, pois “constitui o espelho que reflete a imagem com a qual os pobres ordenam e dão sentido ao mundo social” (Sarti 2007, 22). Sua importância, portanto, não é apenas funcional — embora o seja —, mas também estrutural, pois se constitui como referência simbólica que organiza a explicação do mundo para esses sujeitos.

Se a família pode ser compreendida pelas populações periféricas como um núcleo funcional e estrutural, as igrejas evangélicas neopentecostais, por sua vez, têm atuado como uma família estendida, ou seja, um ponto efetivo de apoio, nas mais diversas dimensões, aos indivíduos mais vulneráveis. Ao analisar o papel das igrejas evangélicas em comunidades urbanas, o antropólogo Juliano Spyer afirma que elas têm cumprido a função de estado de bem-estar informal, ou seja, “as igrejas têm uma atitude empreendedora e evangelista que amplia sua oferta de ajuda onde o Estado não está presente” (Spyer 2020, 116).

De maneira concreta, essas instituições atuam em regiões periféricas oferecendo ajuda material e imaterial, além de conforto emocional e até mesmo alimentação. Nesses espaços, são constituídas redes de ajuda mútua, em que as pessoas compartilham desde oportunidades de trabalho a caronas para hospitais, em casos de emergência. Além disso, muitas igrejas oferecem cursos de alfabetização de jovens e adultos, reforço escolar e atividades extraclasse para ocupar o tempo de crianças e adolescentes quando não estão na escola. Não raro, são um porto seguro para os que querem deixar o tráfico de drogas e viver tranquilamente em suas comunidades (Spyer 2020).

Não é à toa que muitos estudantes disseram considerar a igreja da qual participam como um movimento social, como explicou o estudante Pedro, ex-traficante de drogas, que modificou os rumos de sua vida com o apoio e acompanhamento de sua instituição religiosa:

Eu considero a igreja um movimento social. Porque a igreja faz um papel social até melhor que algumas políticas públicas. Eu mesmo sou um, eu mudei por causa da igreja [...] o meu pastor: “você tem que estudar que um dia você vai ter família, você tem que parar de usar droga, que isso vai acabar com sua vida”. (7 de outubro de 2022, Vitória, Espírito Santo, Brasil)

Essas reflexões sobre o papel da família e da igreja — compreendida como uma família estendida — explicitam o quanto essas duas instituições representam segurança e proteção para populações que vivem em periferias urbanas, com acesso limitado a bens e serviços públicos oferecidos pelo Estado. Essa dimensão microscópica permite compreender por que tais elementos são tão centrais para esses sujeitos, sendo exitosamente mobilizados em termos de identificação política, sobretudo quando se configura uma ameaça que visa justamente destruir o que resta de estabilidade material e emocional para esse público. Contudo, essa sensação de segurança, muitas vezes patrocinada pela família, também pode se manifestar em sua ausência. Isso ocorre quando esses sujeitos associam os problemas vivenciados à ausência da família — ou da igreja, entendida, conforme visto, como uma espécie de família ampliada.

Fantasia, mobilização de afetos e construção do olhar sobre “eles”

Para dar continuidade à compreensão do processo articulatório que tornou o bolsonarismo hegemônico no país, esta seção aborda a dimensão da fantasia, demonstrando como os estudantes visualizaram em Jair Bolsonaro a possibilidade de uma ordem harmoniosa em meio ao caos, ao mesmo tempo em que designaram diversos “inimigos” para o país, sob forte mobilização de afetos.

Conforme já foi argumentado, a fantasia é uma narrativa que preenche a falta constitutiva do sujeito, fornecendo-lhe plenitude e harmonia, em sua face beatífica, por meio de uma ordem. Além disso, designa as ameaças e os obstáculos que podem impedir sua realização, em sua dimensão horrível. Entre os participantes desta pesquisa, identificou-se, inicialmente, a percepção de desordem em relação à situação do país, exemplificadas pelo sentimento de decadência nos valores da família e pelo descrédito em relação às instituições públicas: “A família é a base da sociedade e, hoje em dia, a família não existe mais. Está tudo desmoronando. Você conversa com o filho, o filho quer matar o pai, o pai quer matar o filho, e é uma bagunça danada. Não respeitam mais”, falou Dalva, 64 anos, técnica de enfermagem (6 de maio de 2022, Vitória, Espírito Santo, Brasil).

Diante dessa sensação de desordem, o desejo de que o país fosse cuidado por alguém de pulso firme e acompanhado da promessa de estabelecimento de uma ordem mais harmônica para as famílias fizeram com que muitos estudantes apostassem na candidatura da extrema direita, como revelou Diana, ao destacar o quanto Bolsonaro elevou a autoestima do brasileiro:

Bolsonaro fez uma grande parte que desacreditava no Brasil voltar a acreditar. Eu fiquei muito chocada no Dia da Independência. Vi a galera na rua [...] abraçando a bandeira [...]. Então, isso que o Bolsonaro trouxe [...] no país: estava sem esperança nenhuma e, atualmente, eu vejo muito a galera falando “eu quero abrir uma microempresa, eu quero fazer isso, eu quero fazer aquilo”. Querendo ou não, isso veio com esse olhar dele, de levar esperança ao brasileiro. (23 de setembro de 2022, on-line)

A face horrível da fantasia, todavia, preponderou nas falas dos participantes, principalmente quando se referiram aos riscos e às ameaças a essa ordem beatífica, identificados nas figuras do PT e da esquerda, os inimigos a serem combatidos. Esse partido foi associado à ideia de comunismo e socialismo, os quais equivalem, entre os eleitores de Bolsonaro, a autoritarismo e ditadura, bem como à fome e à pobreza. Mencionou-se, com frequência, a aliança da esquerda com governos considerados autoritários, como o da Venezuela e o de Cuba, e um medo generalizado de que esse tipo de regime seja implantado no país.

O comunismo e o socialismo também foram associados à liberação das drogas e do aborto, bem como à expropriação irrestrita de bens privados. O medo de perder o pouco que se tem e a repulsa por ações que consistem em “tomar o que é dos outros” foram sentimentos também identificados nas falas dos estudantes ao opinarem sobre o Movimento Sem Terra (MST), compreendido como parte da esquerda: “Eu acho eles muito violentos. [...] Pelo que eu vejo, pelo que eu leio, eles tomam as coisas das pessoas, assim, [...] com violência”, opinou Dalva (30 de setembro de 2022, Vitória, Espírito Santo, Brasil).

Ainda como desdobramento da rejeição eleitoral ao PT, evidenciou-se que a figura de Lula tem bastante centralidade em termos repulsivos, pois apareceu sob um conjunto de rótulos, como “tudo de ruim”, “ladrão”, “psicopata”, “mitomaníaco”, “mentiroso”, “enganador” e “manipulador”, denominações que sugerem a ideia do engodo. Para o público da pesquisa, especialmente os mais velhos, essa visão foi preponderante, explicitando o sentimento de que foram enganados e ludibriados pelo PT.

Alguns estudantes deram indícios desse sentimento ao afirmar que Lula, além de ser “contra as famílias”, é também “contra os pobres”, o que vai de encontro ao carro-chefe das principais propostas do candidato petista: “Infelizmente, a população não vê que o que ele falou de Bolsa Família, de ajudar os pobres, é só as migalhas que caem da mesa pros besta que vão votar nele, pra ganhar voto, enquanto ele luta pela elite, pelos empresários. Ele não luta pelos pobres [...]. Então ele faz com que a população veja que ele vai fazer alguma coisa, mas não, ele é contra a família, é contra os pobres”, afirmou Vanda (10 de maio de 2022, Vitória, Espírito Santo, Brasil).

A perspectiva do engodo, ou seja, de que Lula enganou a população com suas falsas promessas e boa oratória, quando, na verdade, agia contra os pobres, ficou mais delineada quando alguns eleitores de Bolsonaro disseram não ter sido contemplados pelas principais políticas sociais dos governos petistas. Segundo seus relatos, eles pleitearam tais benefícios ao lado de pessoas que não se enquadravam nos critérios exigidos por esses programas, mas foram contempladas por eles, fato que gerou sentimentos de injustiça, frustração e ressentimento, como pode ser visto na fala de Elisângela durante um grupo focal:

Eu me inscrevi na “Minha Casa, Minha Vida” três vezes [...] sem marido, com dois filhos. Eu vi professora da escola da minha filha ganhar a casa [...] e eu não. Aí veio essas políticas que o PT criou [...]. Eu perdi o horário integral das minhas filhas porque o benefício não era pra mim, era pra filho de drogado, de viciado, de desempregado [...], e eu, mãe trabalhadora, que tinha minhas filhas que eu precisava deixar na escola, [...] pagava 500 reais de babá. [...] Escola, faculdade... A minha filha ficou devendo uma fortuna, “aí, faculdade pra filho de pobre”. Mentira. Dívida para filho de pobre. [...] A proposta pode até existir, mas na prática ela não funciona. Não pra mim, Elisângela, mãe solo de quatro. O que eu tenho hoje é fruto do meu trabalho, [...] o PT não me favoreceu em nada. (3 de outubro de 2023, Vitória, Espírito Santo, Brasil)

A visão de que o projeto de universalização de direitos, bens e serviços públicos proposto pelo PT seria um engodo articulou-se à ideia de que a esquerda é, de maneira geral, hipócrita e demagógica, pois “prega uma coisa e faz outra”. Outros políticos de expressão nacional além de Lula, como Marcelo Freixo e Guilherme Boulos, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), e também artistas, como Emicida, foram classificados dessa mesma forma, conforme o depoimento de Eduardo, que argumentou que um dos motivos que o faz rejeitar a esquerda é que muitos representantes desse campo político usufruem de privilégios materiais que eles mesmos criticam: “O Emicida falou no Rock in Rio que a burguesia fede, e o preço do ingresso é mil reais. E ele está vestindo uma camisa da Gucci que vale 7 mil reais. Como você fala que a burguesia fede, uma besteira dessa, num evento onde que [...] um pobre que ganha um salário-mínimo [...] não tem condição de pagar um ingresso. Pra mim, soa uma narrativa muito hipócrita” (6 de setembro de 2022, Vitória, Espírito Santo, Brasil).

Além dos inimigos corporificados no PT e em representantes da esquerda, outras duas ameaças à ordem foram mencionadas em tom conspiratório. Uma delas vem do meio acadêmico, considerado um “reduto esquerdista”, em que professores, intelectuais e ativistas da cultura atuam na doutrinação de estudantes para os ideais da esquerda. A outra vem do plano espiritual e se manifesta na forma de uma “guerra do bem contra o mal”, conforme os escritos bíblicos que versam sobre o fim dos tempos. Essa batalha possui expressões concretas na política nacional, como explicou a estudante Dalva: “A gente pede muita oração pelo país, né? [...] Porque nós estamos em guerra espiritual. [...] satânica mesmo, o bem com o mal. [...] A gente vê estampada, escancarada. A gente não tem leis mais. O STF tomou conta do Brasil, não tem presidente, não tem ninguém. É o STF falou, tá falado, entendeu? E aí, só Deus” (30 de setembro de 2022, Vitória, Espírito Santo, Brasil).

Nesse cenário, para que o lado do “bem”, das famílias, do “Brasil”, vença o lado do “mal”, do PT, dos LGBT, é necessário o apoio a candidatos que encampem essa batalha, até mesmo para que o direito à expressão da fé seja protegido e assegurado. A estudante Elisângela, por exemplo, externou seu medo de que uma eventual vitória da esquerda desencadeasse uma perseguição aos cristãos, o que impediria a realização de cultos de portas abertas.

A fim de compreender como foi possível a construção dessas fantasias com tamanha eficácia e capilaridade entre a população brasileira, é importante ressaltar o papel peculiar e decisivo da internet, como será mostrado na próxima e última seção.

Engajamento popular e desintermediação entre líder e povo: o papel da internet na construção da fantasia

O ambiente digital, sobretudo as redes sociais e aplicativos de mensagens, foi mencionado, pelos participantes da pesquisa, como o espaço de maior influência para definir seu apoio a Jair Bolsonaro. Sobre esse tema, um aspecto a ser ressaltado é o engajamento de pessoas comuns na campanha do candidato durante as eleições, o que foi possível devido à popularização do uso do aplicativo de mensagens WhatsApp. Essa ferramenta, na visão de Avelar (2021), além de ser a própria definição de internet para milhões de brasileiros com planos de celular com limite de dados, permitiu que o bolsonarismo construísse “uma rede de sociabilidades, um vasto universo de engajamento popular forjado em laços familiares, religiosos e de bairro” (2021, 266).

Conforme o autor, o mecanismo do aplicativo que tornou essa constituição viável foi a função de encaminhamento de mensagens, cuja fonte e autoria originais do conteúdo são apagadas no momento de seu repasse. Dessa maneira, a veracidade da informação recebida passou a ser creditada às relações pessoais de confiança estabelecidas com o sujeito que a enviou, em geral, alguém próximo, como um vizinho, um membro da família ou o pastor da igreja. Nesta pesquisa, o estudante Ronaldo disse que o grupo de WhatsApp do time de futebol do qual participa era o espaço em que mais se trocavam mensagens sobre política.

Outro elemento que contribuiu para intensificar a adesão popular a Jair Bolsonaro foi o tipo de mediação proporcionada pelas mídias digitais, que consiste no efeito de ausência de mediação entre o líder e o povo, de modo a parecer concreto o acesso direto ao candidato ou presidente (Cesarino 2019). Nesta pesquisa, esse efeito foi explicitado pela estudante Dalva, ao dizer que conversava diretamente com Michelle Bolsonaro, ex-primeira-dama: “Eu, de vez em quando, converso com a Michelle Bolsonaro [...] pelo Instagram. Aí eu cobro dela: ‘Olha só, seu marido falou assim, que ia fazer isso. Vem cá, ele não vai fazer não? Você tem que cobrar dele, ele está me representando’ [...] Ela fala assim, ‘eu vou ver se você tem razão e vou passar pra ele e vou conversar com ele’. Eu falo assim, ‘eu quero resposta’. Ela me responde” (6 de maio de 2022, Vitória, Espírito Santo, Brasil).

Ainda sobre esse aspecto, Cesarino (2022) argumenta que, desde as eleições de 2018, boa parte dos brasileiros dispensou a opinião de especialistas e da mídia tradicional, pois passou a enxergá-los como fontes de manipulação e hipocrisia. Entre os eleitores de Bolsonaro desta pesquisa, esse aspecto mostrou-se evidente: “Antes de ter amplo acesso à internet, nós vivíamos num mundo que nós tínhamos uma fonte só de informação. Poxa, o mundo acabando lá fora, e a gente só tinha aquele mundinho ali pra gente”, disse Ronaldo (29 de setembro de 2022, on-line). Já Suzana opinou: “O cara cortou boa parte da teta da Globo, né, 80% do orçamento da Globo [...]. Eu achei isso bacana, pô, eu estou trabalhando pra caramba pra sustentar os jornalistas da Globo [...], uma TV muito sensacionalista, [...] espalha muita fake news” (16 de outubro de 2022, Vitória, Espírito Santo, Brasil).

Essa desconfiança e descrédito em relação à imprensa tradicional, que se estende às universidades e aos sistemas escolar, legal e de saúde, configuram-se como uma crise dos sistemas peritos6 (Cesarino 2021), a qual se caracteriza, por sua vez, pela busca da verdade não por meio dos procedimentos “fixados pelas estruturas neguentrópicas modernas (notadamente, a ciência, a imprensa profissional e as instituições do Estado democrático de direito), mas da experiência pessoal e imediata, elos causais ocultos, e pertencimento identitário do tipo antagonístico” (2021, 79). Assim, a confiança na produção de verdades objetivas por especialistas é profundamente abalada.

A digitalização crescente da vida é um dos fatores que tem contribuído para a crise de confiança nesse modelo, uma vez que as novas mídias têm atuado justamente nos processos de desintermediação (Cesarino 2022), ou seja, na geração de desconfiança em relação aos instrumentos e instituições anteriormente consagrados como redutos de veracidade e confiabilidade. Ao mesmo tempo, elas também têm protagonizado a transferência dessa confiabilidade para os “novos peritos”, por meio de processos de reintermediação, entre os quais podem ser mencionados os influenciadores digitais ou youtubers, autoproclamados especialistas em algum tema ou por meio dos próprios sistemas de algoritmos das plataformas.

A confiabilidade nos “novos peritos” pareceu se sobressair entre os participantes da pesquisa quando indagados sobre os meios de informação que julgavam mais confiáveis em se tratando de política. Muitos disseram formar sua opinião por meio de canais do YouTube, do buscador do Google ou das redes sociais: “A informação já não é mais de uma emissora de televisão, isso é ultrapassado, não tem mais como eles influenciarem. A pessoa vai pesquisar no Google, vai entrar no Instagram”, relatou Pedro (7 de outubro de 2022, Vitória, Espírito Santo, Brasil). Já Lucas comentou: “No meu dia a dia, uso mais o Instagram para política, e também o Twitter [agora X]. E, claro, que do Twitter eu vou pro Google pra validar se essa informação é verdade ou não [...]. Em 2018, com certeza, eu só usava o YouTube pra me basear” (7 de setembro de 2022, on-line).

Considerações finais

Este artigo objetivou demonstrar a maneira como se deu a identificação política de estudantes de camadas populares, beneficiários de uma política de inclusão educacional, com o candidato Jair Bolsonaro nas eleições de 2018 e 2022. Sob o referencial teórico- metodológico da Teoria do Discurso da Escola de Essex e ancorados em dados empíricos coletados em entrevistas, grupos focais e observação, fica evidente como os sujeitos dessa pesquisa atribuíram sentido à escolha de um presidenciável de extrema direita.

A partir do entendimento de que as identidades políticas não são fixas, mas forjadas de maneira relacional mediante processos de identificação que visam preencher a falta constitutiva dos sujeitos por meio da fantasia, demonstra-se como os estudantes definiram seu apoio a Jair Bolsonaro a partir de uma relação de antagonismo com o PT e com a esquerda. Além disso, é apresentado o modo como as demandas diferenciais desse público foram discursivamente articuladas, por meio de cadeias de equivalências, em torno do combate a um inimigo comum.

Nesse sentido, verificou-se que a identificação política desse grupo não foi mobilizada a partir de questões relativas à sua condição econômica, mas de antagonismos de ordem moral, evidenciando a ausência de contradição entre ser pobre e ser de direita. No âmbito da fantasia, descreve-se a expectativa dos discentes em torno da promessa de uma nova ordem para o Brasil, bem como a maneira como os inimigos da “família” foram sendo edificados. Além disso, descreve-se a estratégia digital de desintermediação entre o candidato e seu eleitorado, um elemento que contribui para o sentimento de proximidade com o líder político, em um contexto de desconfiança nos sistemas tradicionais de verdade e confiança.

Por fim, esperamos que esta análise contribua para a compreensão de algumas das nuances do crescimento dos extremismos políticos no Brasil e no mundo, sobretudo entre segmentos de origem popular. Esse exercício analítico, quiçá, possa oferecer pistas para os desafios das democracias no século 21.

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  31. Tocqueville, Alexis de. (1835) 2005. A democracia na América: leis e costumes. De certas leis e certos costumes políticos que foram naturalmente sugeridos aos americanos por seu Estado social democrático. São Paulo: Martins Fontes.

Este artigo é parte da tese de doutorado da autora. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo e está registrado na Plataforma Brasil sob o n.º ٥٦٦٠٧٧٢٢.٢.٠٠٠٠.٥٥٤٢. Ambos os autores contribuíram para a concepção da ideia, estruturação, análise dos dados e redação do artigo; a autora realizou a coleta de dados e escreveu a maior parte do documento; contudo, ambos revisaram a versão final do texto.

1 Foi realizada uma análise comparativa entre os processos de identificação política de eleitores de Jair Bolsonaro e aqueles que não votaram no vencedor do pleito presidencial de 2018. Coletaram-se dados referentes a 20 estudantes, dos quais nove optaram pelo candidato e 11 se opuseram a ele, direcionando seus votos, no segundo turno, para os presidenciáveis petistas. Ainda que o estudo original tenha se concentrado em comparar os eleitores a favoráveis e contrários a Bolsonaro, este artigo se concentra apenas nos dados dos eleitores favoráveis a ele.

2 Embora os critérios para a seleção dos participantes tenham sido rigorosamente definidos, reconhecemos que existem limitações nesse processo. Por exemplo, as indicações dos participantes foram feitas por sujeitos com experiências educativas e políticas próprias, o que, por si só, pode pesar na indicação ou exclusão de determinado tipo de estudante. Além disso, a inclusão apenas de discentes com posições políticas mais ostensivas na pesquisa pode ter impactado seus resultados, uma vez que foi captada a identidade política de um perfil mais específico de público no universo total de discentes do Proeja.

3 Apenas uma estudante declarou ter votado, no primeiro turno, em candidatos diferentes de Bolsonaro, a saber: João Amoedo (Novo), em 2018, e Ciro Gomes (Partido Democrático Trabalhista [PDT]), em 2022. Os demais optaram por Bolsonaro nos dois turnos dos pleitos.

4 A fim de preservar a identidade dos participantes, todos os nomes de pessoas apresentados neste artigo são fictícios.

5 Laclau e Mouffe (2015) criticam as concepções que compreendem o sujeito como um agente racionalista, dotado de unicidade e homogeneidade em suas posições. Eles o concebem como descentrado, disperso ou deslocado, além de caracterizado por identidades abertas, fragmentadas e contraditórias (Hall 2006).

6 Giddens (1991, 35) designou como “peritos” os “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje”. São mecanismos da modernidade que permitem a manutenção da confiança nas interações que ocorrem sem a simultaneidade do tempo e do espaço.


Luciana Silvestre Girelli

Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo, campus Vitória, Brasil. Últimas publicações: “Guerras culturais escolares: 7 pontos para desarmar o campo minado” (em coautoria), em Faburlações de escola, organizado por Steferson Zanoni Roseiro, José Raimundo Rodrigues e Alexsandro Rodrigues, 64-77 (Itapiranga: Schreiben 2022); e Pílulas de realidade: relatos autobiográficos dos estudantes de Guia de Turismo do Proeja Ifes em tempos de Covid-19, organizado em conjunto com Bruno Moura e Michelle Hanke (Vitória: Edifes Parceria 2022). https://orcid.org/0000-0002-2973-3924 | luciana.girelli@ifes.edu.br

Igor Suzano Machado

Doutor em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Brasil. Professor da Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil. Últimas publicações: “Luiz Werneck Vianna e o Brasil contemporâneo: lições de sociologia crítica para uma sociedade em crise”, Desigualdade e Diversidade 25: 222-245, 2025, https://doi.org/10.17771/pucrio.ddcis.69099; e “Sociologia política da política ou sociologia política do político?”, Revista Tomo 43: e19607-16, 2024, https://doi.org/10.21669/tomo.v43.19607. https://orcid.org/0000-0003-4843-9664 | igorsuzano@gmail.com