1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Iniciamos pelo que não é posto em dúvida nos cursos de formação de professores indígenas (ou, pelo menos, espera-se que não seja!). Acreditamos ser inquestionável que um dos papéis mais importantes de uma escola indígena que se considera diferenciada, específica, intercultural, bilíngue, autônoma e de qualidade é o desenvolvimento das competências comunicativas (falar/entender, ler/escrever) durante o processo de escolarização a que os alunos indígenas são submetidos (RCNEI, 1998). Acreditamos ser inquestionável que o aprimoramento dessas competências comunicativas (nas modalidades oral e escrita) seja feito de forma que propicie, de fato, o desenvolvimento e a manutenção de habilidades bilíngues, considerando a realidade sociolinguística da comunidade indígena e os níveis de proficiência1 de cada aluno com relação à primeira e à segunda língua (Swain, 1986).
Acreditamos ainda ser inquestionável a importância de o aluno indígena ser alfabetizado na sua língua materna, podendo esta ser indígena ou não, devendo desenvolver as habilidades de leitura e escrita, potencialmente, em sua primeira língua e, depois, transferir tais habilidades quando estiver aprendendo a segunda língua (D’Angelis, 2012).
Acreditamos, por fim, ser inquestionável que os cursos de formação de professores indígenas já se deram conta de sua responsabilidade para fazer valer e pôr em prática o projeto de educação bilíngue que mais se aproxima do ideal preconizado nos dispositivos jurídicos2, que garantem a possibilidade de construção de uma escola indígena diferenciada e específica, refletindo os anseios e as necessidades das comunidades indígenas envolvidas.
Enfim, é tratado neste texto o que tem sido de maneira geral a prática de muitas escolas indígenas guarani e kaiowá no que se refere à oralidade e à escrita no modelo bilíngue de educação adotado3. O objetivo é muito mais discutir as possibilidades de traçar um percurso que pode levar a escola indígena de um bilinguismo subtrativo a um bilinguismo aditivo4 do que apresentar críticas ao sistema de ensino escolar presente nessas comunidades indígenas.5
Restringimos nossa discussão àquela realidade sociolinguística em que a língua indígena é a primeira a ser adquirida pela criança, como é o contexto das comunidades indígenas guarani e kaiowá do cone Sul de Mato Grosso do Sul.6 Apresentamos nossos apontamentos sobre o modelo de ensino bilíngue que vem sendo colocado em prática no ensino de línguas nas escolas dessas comunidades. A partir disso, reunimos elementos para reconhecer a existência de modelos distintos de ensino bilíngue, enfatizando a necessidade de assumir, num bilinguismo aditivo, o sucesso para a manutenção e o desenvolvimento de habilidades bilíngues almejadas pelas minorias linguísticas que se preocupam em manter vivos seus sistemas próprios de comunicação (além de sentirem a necessidade de aprender o português).
Nesse sentido, buscamos discutir, portanto, as práticas de ensino bilíngue que envolvem o trabalho com a oralidade e a escrita. Para tanto, consideramos importante partir de uma metodologia que possibilite um desenvolvimento contínuo e progressivo das competências e habilidades linguísticas das línguas que fazem parte da realidade do aluno indígena guarani ou kaiowá.
Por fim, reiteramos a necessidade de os cursos de formação de professores indígenas guarani e kaiowá darem conta de aprimorar as habilidades bilíngues dos professores em formação, de modo que eles se sintam seguros e capazes de imprimir uma maior qualidade no trabalho com a oralidade e a escrita em suas práticas de ensino nas escolas indígenas, não apenas em língua portuguesa; mas, na língua indígena, principalmente quando esta é a primeira língua do aluno7.
2. UM BREVE PANORAMA DA REALIDADE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA GUARANI E KAIOWÁ: QUANDO SE TEM UM MODELO DE EDUCAÇÃO BILÍNGUE NA ESCOLA INDÍGENA, O QUE REALMENTE SE TEM?
De forma geral, no Brasil, tem-se justificado a implantação de uma educação bilíngue em escolas específicas para indígenas quando se recebem, nessas escolas, crianças com limitada proficiência à total proficiência em sua primeira língua, na segunda língua ou em ambas. Trata-se de crianças indígenas cuja língua materna é uma língua social e/ou economicamente desprestigiada ou de crianças indígenas que já possuem o português como primeira língua e, devido às propostas de políticas linguísticas estabelecidas pela própria comunidade, vão à escola também para aprender a língua indígena como segunda língua8.
Em contrapartida, o que se percebe é que o Programa de Educação Bilíngue desenvolvido em escolas indígenas ainda não é bem-sucedido, pois não tem dado conta, a contento, de levar ao desenvolvimento e à manutenção de habilidades bilíngues (D’Angelis, 2012). Também tem encontrado dificuldades para elevar os níveis de rendimento escolar, além de não ter encontrado, de certa forma, meios de propiciar aos alunos indígenas um enriquecimento pessoal sociopsicológico, a partir do modelo bilíngue adotado. Isso decorre do fato de se priorizar o ensino de língua portuguesa em detrimento da língua indígena (tanto na modalidade oral quanto escrita, mas muito mais na escrita), não garantindo ao aluno o tempo suficiente para desenvolver as competências e habilidades linguísticas em sua primeira língua e já submetê-lo ao processo de aprendizagem dessas competências e habilidades na segunda língua (quando a segunda língua é a portuguesa), conforme Martins (2013).
Somada a essa realidade, agrava-se a situação quando a língua de instrução não é a língua materna do aluno. Normalmente, isso acontece quando o aluno indígena tem como primeira língua a língua indígena, e seus professores não são bilíngues, principalmente os que ministram aulas nas séries finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, mesmo quando as escolas estão em área indígena, (Martins & Knapp, 2016).
Cabe destacar ainda que o material didático recebido das secretarias de educação, além de não fazer parte do contexto do aluno, está escrito em língua portuguesa, pois o público a que se destinam, prioritariamente, tais materiais, tem o português como língua de instrução, já que é a língua materna da maioria dos brasileiros e é a língua oficial do país. Essa realidade leva professores indígenas bilíngues a utilizar os livros didáticos em português e, constantemente, fazer traduções ao longo de suas aulas para tornar compreensível aos alunos o que está tentando ser transmitido em termos de conhecimento; entretanto, isso é feito com bastante dificuldade e com grandes chances de cometer equívocos, tendo em vista que a teoria, as técnicas e as práticas de tradução, aliadas às áreas de conhecimento, muitas vezes, não fazem parte do currículo dos cursos de formação de professores indígenas. Em outros casos, recebem os livros, mas os abandonam em um canto qualquer9, por não compreenderem também muito do que neles está escrito.
Destacamos que todos esses problemas fazem parte também da realidade das escolas indígenas guarani e kaiowá do cone sul de Mato Grosso do Sul, mas é uma situação vivenciada por muitos outros povos, aos quais tivemos acesso por meio de nossa atuação profissional como consultores/assessores linguístico-pedagógicos nos estados do Acre, Rondônia, Amazonas e Rio Grande do Sul, desde 2010.
É relevante notar ainda que, na maioria dos casos, para dar prosseguimento aos estudos, alunos indígenas guarani e kaiowá devem se deslocar até a escola da cidade, a fim de concluir o Ensino Fundamental e o Ensino Médio, pois esses níveis de ensino ainda não foram implantados em boa parte das escolas indígenas (Martins & Knapp, 2016). Por isso, acaba sendo uma preocupação da comunidade indígena, da direção e da coordenação das escolas, bem como dos professores indígenas, em iniciar o processo de ensino-aprendizagem da língua portuguesa antes que os alunos cheguem às escolas das cidades, para que os mesmos não sejam discriminados, não se sintam incapazes de se “integrar” e se adaptar ao sistema de ensino que, por sua vez, não possui nenhuma preparação para recebê-los.
Por fim, em algumas comunidades indígenas guarani e kaiowá do cone sul de Mato Grosso do Sul, embora haja Ensino Fundamental completo e Ensino Médio, torna-se necessário o ensino de português antes de os alunos passarem para o Sexto Ano do Ensino Fundamental, pois a esmagadora maioria de professores do Sexto ao Nono Ano desse nível de ensino é monolíngue em português, e os materiais didáticos utilizados nas aulas de todas as disciplinas estão escritos em português; logo, a necessidade de se aprender português o mais rápido possível torna-se uma prioridade indiscutível.
Diante disso, o que se tem, enquanto modelo de educação bilíngue, é um modelo ainda malsucedido, pois não permite que o aluno indígena desenvolva plenamente as competências comunicativas nem na primeira nem na segunda língua, ou seja, o aluno passa por uma formação que apresenta lacunas no desenvolvimento de competências e habilidades linguísticas nas línguas que a escola se propõe a ensinar (D’Angelis, 2012; Martins, 2013; Martins & Knapp, 2016, Knapp & Martins, 2016). Além disso, da forma como se estabelece e se desenvolve a educação nas escolas indígenas guarani e kaiowá, que adotam esse modelo de educação bilíngue, é notória a supervalorização da língua portuguesa (independente se ela é a primeira ou segunda língua do aluno), levando a um deslocamento linguístico que, muitas vezes, impossibilita enxergar a funcionalidade da língua indígena no ambiente escolar e as possibilidades de ampliação de seu uso nesse contexto. Como consequência, é atestado um baixo rendimento escolar e uma dificuldade em aceitar que ser bilíngue é algo vantajoso.
A esse tipo de modelo dá-se o nome de Bilinguismo de Transição (ou subtração), pois acaba levando a uma exclusão gradativa da língua indígena da vida escolar do aluno, sendo essa substituída paulatinamente pela língua portuguesa, isto é, trata-se de um modelo de educação bilíngue fraco que resulta em monolinguismo na língua majoritária, realidade já vivida por comunidades indígenas do Brasil e em outros países (Barros, 1994; ; D’Angelis, 2012; Maher, 2005, 2007; Megale, 2005; Melià, 1997; RCNEI, 1998; Silva, 2001; 2003; ; Swain, 1986;). Cabe destacar que este modelo chegou ao Brasil no final da década de 1950 com o Summer Institute of Linguistics (SIL) (Barros, 1993, p. 311) e ainda permanece, mesmo com o avanço das discussões acerca da Educação Escolar Indígena, que resultou em uma legislação que assegura o desenvolvimento de um modelo de educação que reconhece e valoriza a língua materna dos povos indígenas do Brasil.
3. UM BREVE PANORAMA DO ENSINO DE LÍNGUAS EM ESCOLAS INDÍGENAS GUARANI E KAIOWÁ: QUANDO SE TEM UM ENSINO BILÍNGUE NA ESCOLA INDÍGENA, O QUE REALMENTE SE TEM?
O que se entende por ensino bilíngue é aquele que prevê no currículo das escolas indígenas as disciplinas correspondentes às línguas a serem ensinadas. Vendo por esse lado, a escola do não-indígena também pode ser considerada bilíngue, uma vez que, além do ensino do português como língua materna, os alunos têm a oportunidade de “aprender” uma língua estrangeira (inglês ou espanhol, normalmente). O problema dessa definição de ensino bilíngue (no caso da escola indígena) é achar que a simples presença da língua indígena e da língua portuguesa no currículo faz dos alunos ingressantes indivíduos bilíngues ou faz da escola uma instituição de ensino bilíngue.
Para ser mais claro, a escola pública do não-indígena oferece o ensino de língua portuguesa como língua materna, além de uma língua estrangeira. Os alunos passam, em média, cerca de doze anos tendo aulas de língua portuguesa e cerca de sete anos tendo aulas de uma língua estrangeira. Pelo contar dos anos, esse tempo seria mais que o suficiente para se tornar bilíngue, mas o que tem ocorrido (e as avaliações oficiais têm demonstrado isso) é que muitos alunos, ao terminarem o Ensino Médio, possuem grandes dificuldades em falar em público, em ler e escrever textos de gêneros diversos em sua língua materna. Essa realidade é mais grave quando se avalia as competências comunicativas na língua estrangeira cursada. Tudo bem, podemos chamar isso de ensino bilíngue. Nesse caso, temos apenas que avaliar se esse ensino atende as demandas e os anseios dos alunos, ou seja, se é um ensino bilíngue de qualidade10.
Voltando ao ensino bilíngue das escolas indígenas guarani e kaiowá, que recebem alunos cuja primeira língua não é o português, verifica-se que a língua portuguesa predomina durante todo o processo de formação desse aluno, tanto como língua de instrução oral e escrita (nos casos em que os professores não são bilíngues) quanto como uma disciplina, excetuando os primeiros anos de alfabetização em língua materna. A ideia de quanto mais cedo e quanto mais tempo for reservado para trabalhar a língua portuguesa tornará o aluno indígena bilíngue ainda é o discurso e a prática predominante nas escolas indígenas guarani e kaiowá, restando poucas horas da semana para se dedicar ao ensino da língua indígena. Esta, pela carga horária semanal, assemelha-se à disciplina de língua estrangeira da escola não-indígena, assim como D’Angelis (2012) também verificou com outras comunidades indígenas, sobretudo Kaingang e Xokléng.
Com base nessa realidade, parece ser necessário até relembrar o conceito de bilinguismo. Para isso, podemos entender esse fenômeno como uma condição humana muito comum, que é a capacidade de fazer uso de mais de uma língua (Maher, 2005). Além disso, já se sabe que o falante bilíngue não precisa possuir uma proficiência simétrica nas quatro habilidades básicas: falar, entender, ler e escrever (Silva, 2001), ou seja, o bilíngue pode ser mais ou menos fluente em uma língua do que em outra, sendo que o grau de proficiência em cada língua depende da sua funcionalidade, isto é, depende do uso e das condições de uso que o bilíngue faz das línguas em questão (Grosjean, 1982).
No entanto, se as escolas indígenas guarani e kaiowá decidiram desenvolver todas as competências comunicativas na primeira e na segunda língua, e elas estão cientes de que o uso das línguas por uma pessoa bilíngue é determinado pela necessidade (se uma habilidade particular não é necessária, ela não desenvolverá), vemos que tais escolas, que oferecem um ensino bilíngue, têm muito ainda para ajustar, começando por dispor de mais tempo para trabalhar bem a primeira língua, possibilitando a ampliação de uso dela, tornando-a mais funcional não apenas na modalidade oral, mas também na modalidade escrita. Dessa forma, acreditamos que o aluno terá condições de transferir as habilidades aprendidas (e as que foram aprimoradas) para o uso da segunda língua (Swain, 1986). Nesse último caso, a escola precisa também se dá conta de que os métodos utilizados para o ensino de língua materna não são os mesmos para o ensino de uma segunda língua.
Logo, quando se diz ter um ensino bilíngue nas escolas indígenas guarani e kaiowá, o que ainda se tem é um ensino bilíngue assimétrico, em que a língua predominante é a língua portuguesa, sendo ensinada como se fosse a primeira língua, pois os professores fazem uso de métodos e materiais didáticos que servem ao ensino de português como língua materna, e a carga-horária semanal dispensada para esse ensino é duas ou três vezes maior do que a carga-horária reservada para o ensino da língua materna no mesmo período11.
4. BILINGUISMO SUBTRATIVO VS. BILINGUISMO ADITIVO: QUANDO SE TEM ESCOLHA, O QUE TEM SIDO ESCOLHIDO NAS ESCOLAS GUARANI E KAIOWÁ?
Partimos do pressuposto que, na realidade vivida por muitos povos indígenas, ser bilíngue é fundamental, obrigando as comunidades indígenas a aceitarem essa condição já a partir da infância, como é o caso dos guarani e kaiowá do cone sul de Mato Grosso do Sul.
Sabe-se que o bilinguismo na criança pode ser desenvolvido de duas formas: sucessivo ou simultâneo. No primeiro caso, a criança adquire a segunda língua após os três anos de idade. Durante essa primeira fase, predomina a língua dos pais e, só depois, progressivamente, ela vai adquirindo a segunda língua. No segundo caso, a aquisição da segunda língua é feita geralmente antes dos três anos de idade (Grosjean, 1982).
Conforme McLaughlin e Grosjean (como citado em Silva, 2001), são basicamente quatro os fatores que levam as crianças ao bilinguismo: (1) casamento entre indivíduos de etnias diferentes; (2) proximidade de outros grupos linguísticos ou exposição constante a outra língua; (3) o ingresso na escola, onde normalmente a língua adotada não é a da criança; e (4) interesse e desejo da comunidade em tornar as crianças bilíngues. A grande questão que se coloca é que tipo ou modelo de ensino bilíngue acaba sendo adotado pela comunidade, principalmente via escola?
O que temos visto é que ainda predomina o modelo de Bilinguismo Subtrativo, chamado também de modelo Assimilacionista de Transição (Barros, 1994; D’Angelis, 2012; Martins & Knapp, 2016). Nele, a língua de instrução, nas séries iniciais, é a língua materna do aluno. Isso quer dizer que a criança é alfabetizada na sua própria língua. Contudo, após ela entender o funcionamento da escrita, paulatinamente vai sendo introduzido o português até que a língua materna seja totalmente excluída do currículo escolar (Maher, 2007). Temos o conhecimento de que essa é a realidade vivenciada por muitos povos indígenas no Brasil, inclusive os povos guarani e kaiowá de Mato do Grosso do Sul. Avaliando a função da língua materna, nesse caso, verifica-se que sua presença no currículo é apenas para servir de elemento facilitador da aprendizagem da língua dominante, isto é, uma ponte que facilitará a aprendizagem da língua dominante que, ao ser aprendida, passa a ser a língua de instrução na apresentação dos conteúdos escolares. Esse modelo é considerado subtrativo porque seu objetivo final é retirar a língua materna do falante: o aluno começa a vida escolar monolíngue na língua indígena, passa por um bilinguismo transitório e termina monolíngue na língua portuguesa com o passar do tempo.
Como Bilinguismo Aditivo, entende-se aquele modelo de educação que insiste na importância de que a língua materna seja a língua de instrução ao longo de TODO o processo de escolarização e, além disso, que seja adicionada ao repertório comunicativo do aluno a segunda língua, sem que se perca ou deixe de investir no aumento da competência de uso em língua materna (Maher, 2007).
Para alcançar esse modelo bilíngue bem-sucedido, Swain (1986) propõe um programa que seja desenvolvido a partir de três princípios: (1) o princípio de “primeiro as coisas primeiras”; (2) o princípio do “bilinguismo por meio do monolinguismo”; e (3) o princípio do “bilinguismo como um prêmio”. Resumidamente, o primeiro princípio defende o desenvolvimento e manutenção da primeira língua na escola sobre o princípio de que isso proverá o suporte psicológico e sociológico essencial para o aprendizado linguístico e escolar nas duas línguas. O segundo princípio defende o uso separado das duas línguas para fins instrucionais; e o terceiro princípio defende que é de responsabilidade dos professores conhecerem as possíveis vantagens do bilinguismo e as condições que levam a elas. Enfim, favorecer formas positivas de bilinguismo.
Segundo Swain (1986.), é importante estabelecer o papel central da primeira língua da criança em todos os aspectos do seu desenvolvimento educacional. Assegurar que a língua materna da criança seja adequadamente desenvolvida antes de se preocupar com o progresso em segunda língua. Em seu ponto de vista, a primeira língua é tão instrumental para o bemestar emocional e escolar da criança que seu desenvolvimento deve ser visto como a mais alta prioridade nos primeiros anos de escolarização. É bem verdade que, na maior parte das escolas indígena guarani e kaiowá, nos primeiros anos de escolarização a língua materna tem encontrado o seu espaço, no entanto, o trabalho com a língua fica restrito ao processo de alfabetização que, dentro dessa realidade, ocorre nos dois primeiros anos.
Nesse sentido, por causa do desenvolvimento psicológico e emocional da criança, a língua materna deve ser tão funcional na escola como é em outros domínios sociais. Na verdade, a opção pelo ensino na segunda língua pode fazer com que as crianças aceitem a sentença da escola e passe a rejeitar suas famílias. Além disso, as crianças poderiam ainda sentir desgosto e frustração com relação a seus professores e à escola, que poderia levar à hostilidade e à agressão e, eventualmente, ao abandono da escola ou a uma recusa do seu valor (Swain, 1986.). Enfim, a aceitação da língua materna em casa e na escola é claramente, então, um dos primeiros passos para criar um ambiente onde o aprendizado possa ocorrer e favorecer sentimentos de autoestima e autoconfiança.
Seguindo o primeiro princípio para o alcance de um modelo de educação bilíngue aditivo, torna-se fundamental fazer uso da língua materna como língua de instrução, pedir às crianças que busquem a cooperação dos seus pais e pessoas da comunidade fluentes na primeira língua das crianças para poder falar com elas e ajudá-las a preparar trabalhos acerca de suas tradições culturais, histórias da família, contos, mitos, brincadeiras, etc. Ou seja, introduzir a primeira língua dos alunos de minorias é criar, no mínimo, as condições sob as quais o aprendizado pode ter lugar, tendo em vista que as crianças serão capazes de compreender o que está sendo dito, e dessa forma, elas não se atrasam na escola enquanto estão aprendendo português. Acreditamos que não apenas as crianças aprenderão conteúdos escolares, mas elas aperfeiçoarão sua competência em primeira língua nesse processo.
Swain argumenta que desenvolver completa proficiência na primeira língua da criança favorecerá o mesmo na segunda língua. O que se assume é que existe uma proficiência subjacente que é comum a ambas as línguas, por exemplo, uma vez que a leitura, como habilidade e como uma fonte de conhecimento, tenha sido aprendida, então é uma questão relativamente simples transferir a habilidade e conhecimento para um contexto de segunda língua, não se reaprende a ler toda vez que se aprende uma nova língua.
Concordamos com D’Angelis (2012) quando afirma que o que deveria ser feito é a utilização da primeira língua para fins instrucionais na maior parte do currículo nos primeiros anos da escola, com porções crescentes do currículo falado em português nos últimos anos de escolarização elementar. Para sumarizar, o princípio de “primeiro as coisas primeiras” significa que a prioridade da educação deveria ser para garantir que a criança tivesse uma base sólida na sua primeira língua. Fazendo isso, nós forneceremos à criança um ambiente socioemocional no qual as condições básicas para aprender podem ocorrer; e no qual o desenvolvimento linguístico e cognitivo na primeira língua suportará o mesmo na segunda língua.
De acordo com Swain (1986.), o segundo princípio refere-se ao modo no qual as línguas de instrução são usadas pelo corpo docente. As duas línguas podem ser usadas concorrentemente “abordagem misturada” ou separadamente “abordagem de separação”. O princípio do bilinguismo por meio do monolinguismo propõe que o desenvolvimento de habilidades bilíngues por parte dos alunos seja reforçado pelo uso separado das línguas por parte dos professores. As crianças guarani e kaiowá aprendem a ignorar a língua que elas não compreendem. Se uma mesma, ou semelhante, mensagem é costumeiramente dada em ambas as línguas, então não existe motivação para tentar imaginar o que está sendo dito em português. A abordagem separada assegura que as línguas sejam mantidas separadas institucionalmente. Isso, de fato, assegura que a língua materna manterá sua posição, tanto psicologicamente para as crianças como sociologicamente, dentro dos limites da escola como instituição, como uma língua igualmente aceita e importante, ao lado do português.
Quanto ao princípio do bilinguismo como um prêmio, Swain propõe que se permita aos alunos saber como e porque o bilinguismo abre caminhos para eles. Sugere que o professor exalte as vantagens do bilinguismo aos seus alunos, aos pais deles e aos educadores no sistema. A ideia é demonstrar que há vantagens políticas, pessoais, econômicas, culturais, linguísticas e cognitivas.
Enfim, defendemos que apenas por meio do cuidadoso apoio, desenvolvimento e manutenção da primeira língua numa situação de grupo linguístico minoritário é que existe alguma garantia do desenvolvimento de bilinguismo aditivo, isto é, onde a segunda língua é acrescentada à primeira sem qualquer ameaça de perda para a primeira língua. Entretanto, mesmo com a possibilidade de escolha, há ainda escolas indígenas que têm adotado o modelo de Bilinguismo Subtrativo, onde o aprendizado de uma segunda língua, por causa do seu status majoritário ou por seu valor de prestígio resulta na dificuldade de manter a primeira língua em funcionamento, podendo levar naturalmente ao monolinguismo na segunda língua12.
5. ORALIDADE E ESCRITA NO MODELO DE ENSINO BILÍNGUE ADITIVO: QUANDO SE TRABALHA A ORALIDADE E A ESCRITA, O QUE É POSSÍVEL TRABALHAR?
Sendo a oralidade (falar e entender) uma das modalidades das línguas previstas num modelo de ensino bilíngue aditivo a ser trabalhada nas escolas indígenas, não pode deixar de se lembrar da sua importância para as comunidades indígenas, principalmente para aquelas que há pouco passaram a vivenciar a necessidade de desenvolver uma tradição escrita, como as comunidades guarani e kaiowá. Embora o RCNEI (1998) afirme em um momento que não há nenhuma necessidade de intervenção escolar a ser feita no que diz respeito à modalidade oral de uma língua indígena, pelo fato de as sociedades indígenas serem relativamente pequenas e as suas crianças aprenderem a usar oralmente as línguas indígenas, de forma adequada às situações sociais; em outro momento, no mesmo documento, é reforçada a ideia de que a
função da escola é desenvolver nos alunos competências necessárias que eles possam entender e falar sobre os novos conhecimentos introduzidos pelo próprio sistema escolar. Essa competência oral deverá ser desenvolvida inicialmente em língua indígena, se essa for a primeira língua dos alunos, ou caso contrário, em língua portuguesa (RCNEI, 1998, p. 124).
Dessa forma, chega-se à conclusão de que usar e ampliar o uso das línguas do repertório linguístico dos alunos indígenas para se expressar oralmente, de forma eficiente e adequada às diferentes situações e contextos comunicativos, é de responsabilidade da escola indígena bilíngue sim.
Ainda, tomando como base o RCNEI (1998), para se pensar um currículo que garanta o desenvolvimento da linguagem oral, nota-se que o professor pode ir além das atividades que dizem respeito ao uso informal da fala; trabalhando, portanto, o uso da fala em situações mais formais, exigindo do aluno a compreensão de que, para determinada situação, dependendo do interlocutor, do assunto e da forma como o mesmo será abordado, pode-se trabalhar a prática de uma simples conversa do dia a dia (trocar ideias, expor opiniões, descrição de atividades tradicionais ou não-tradicionais, dramatizações, recontar histórias, etc.) e também gêneros ligados ao uso público da oralidade (entrevista, debate, seminário, reportagem, reunião, palestras, etc.). Isso pode ser feito nas duas línguas, mas em momentos distintos. Assim, se consegue estabelecer uma compartimentalização do uso e da prática oral nas línguas em questão, levando o aluno a desenvolver as mesmas habilidades tanto na primeira quanto na segunda língua, considerando a pertinência social do uso dessas línguas pelo aprendiz.
O que não pode deixar de ressaltar é que “na sociedade atual, tanto a oralidade quanto a escrita são imprescindíveis. Trata-se, pois, de não confundir seus papéis e seus contextos de uso, e de não discriminar seus usuários” (Marcuschi, 2007). Nesse sentido, e para dar o prestígio merecido à oralidade, Antunes (2003) alerta que não se pode omitir a fala do trabalho escolar, pois essa omissão reflete uma visão equivocada que acaba sendo justificada basicamente de duas formas: (a) a crença ingênua de que os usos orais da língua estão tão ligados ao cotidiano que nem precisam ser matéria de sala de aula; (b) o entendimento de que a fala é o lugar privilegiado para a violação das regras da gramática. De acordo com essa visão, tudo o que é “erro” na língua acontece na fala, pois ela está acima das prescrições gramaticais. Não se distinguem, portanto, as situações sociais mais formais de interação que vão, inevitavelmente, condicionar outros padrões de oralidade que não o coloquial. Esse, provavelmente, seria um dos momentos da aula, por exemplo, para refletir sobre a variação linguística decorrente das situações de uso das línguas.
Antunes (2003) destaca ainda que é muito comum a escola reduzir o trabalho com a oralidade à prática de reprodução de registros informais, sem que se promova uma análise mais consistente de como a conversação acontece. Com isso, perde-se a oportunidade de explicitar, em sala de aula, os padrões gerais da conversação, de se abordar a realização dos gêneros orais da comunicação pública, que pedem registros mais formais, com escolhas lexicais mais especializadas e padrões textuais mais rígidos, além do atendimento a certas convenções sociais exigidas pelas situações do “falar em público”.
Nesse sentido, verificam-se, pelo menos, três vantagens ao se valorizar a oralidade na escola indígena: (a) ajuda a desenvolver a capacidade de uso da língua nos mais variados contextos em que os alunos podem, de fato, fazer uso real dela; (b) com relação, especificamente, a práticas orais em língua indígena, sendo ela a primeira língua do aluno, sugere-se que tais práticas sejam desenvolvidas primeiro nessa língua até o ponto de os alunos conseguirem transferir as habilidades acionadas para se expressar oralmente em português. Essa postura levará o aluno a compreender a importância de sua língua no âmbito escolar, trazendo vantagens pedagógicas, psicológicas, sociológicas e linguísticas ao processo de ensino-aprendizagem. Pois, ao aluno, será dada a oportunidade de se expressar na sua própria língua e tê-la como parâmetro para o aperfeiçoamento dessas práticas na segunda língua; (c) caso a necessidade de fazer uso da língua indígena em uma determinada situação de fala ainda não exista, a escola pode criar essas necessidades a fim de ampliar o uso da língua materna do aluno para que a mesma consiga ocupar novos espaços; pois é sabido que se novas situações de uso da língua indígena não forem viabilizadas, ela tenderá a permanecer ocupando apenas o mesmo espaço, sendo este cada vez mais restrito, impossibilitando o seu desenvolvimento, a sua modernização, a sua ampliação de vocabulário, etc.
Para sermos, no mínimo, razoáveis, se por meio de uma língua
o homem pode expressar seus pensamentos, suas emoções, seus sonhos, seus desejos e intenções; pode usá-la para convencer e para construir discursos políticos, para fazer poesias, descrições, fatos […] criar narrativas, cantos, rezas e mitos; […] serve também para dar nomes às coisas e às pessoas, para organizar coisas e pessoas em categorias. […] serve para pensar e avaliar o mundo; serve para raciocinar, fazer operações, planejar ações […] transmitir conhecimentos já adquiridos e aumentam, o tempo todo, o seu saber, adquirindo novos conhecimentos (RCNEI, 1998, p. 113).
Então, acreditamos que seja possível trabalhar todo e qualquer gênero oral na língua indígena, assim como fazer uso de todo e qualquer gênero oral em língua portuguesa. Contudo, para se alcançar um ensino bilíngue aditivo, a nosso ver, são as práticas orais em língua indígena que devem anteceder as práticas orais em língua portuguesa, respeitando e valorizando a língua materna do aluno.
Seguindo essa mesma linha de raciocínio para a reflexão da prática de escrita (sem passar pela discussão da importância da escrita em língua indígena, pois isso já dissemos no início que acreditamos ser inquestionável), estamos convencidos de que não há nada que esteja escrito em português que não possa ser escrito em língua indígena. Dessa forma, conhecendo os milhares de gêneros textuais escritos em língua portuguesa que circulam fora das comunidades indígenas (e alguns deles dentro dela), o professor pode trabalhá-los (também e inicialmente) na língua materna de seus alunos, considerando forma, função e conteúdo de cada um dos gêneros selecionados, bem como o nível de complexidade que eles possuem, a fim de que possa escolher os gêneros adequados ao nível de maturidade dos alunos. Vale destacar que o avanço do uso científico de uma língua indígena, incluindo terminologias de diversos campos do conhecimento, inclusive linguístico, só poderá ser efetivado com a inserção gradativa de indígenas em programas de Pós-Graduação para discutir, em sua própria língua, aspectos relativos a cada campo de conhecimento.
O ato de conhecer gêneros textuais escritos utilizáveis em língua portuguesa e transportálos para a escola indígena (e trabalhá-los na língua indígena) só reforçará o valor que a escola está atribuindo à língua materna de seus alunos. Lembrando que todo e qualquer aprendizado na primeira língua não é perda de tempo, pois o aprendizado na primeira língua beneficia o desenvolvimento tanto da primeira como da segunda língua e, por isso, mais tempo gasto desenvolvendo a primeira língua, implica menos tempo dispendido para ensinar a segunda, levando a um desenvolvimento superior da primeira e da segunda língua (Swain, 1986).
Nesse caso, só chamamos a atenção para que a língua indígena não sirva de muleta para o aprendizado da língua portuguesa, ou seja, fazer uso em língua indígena de gêneros textuais escritos já convencionados nas práticas discursivas de usuários do português como língua materna não pode ter como objetivo principal fazer os alunos indígenas entenderem como se estrutura e se usa tais gêneros na segunda língua, e sim, poder explorar os recursos estilísticos e estéticos da língua indígena, bem como a riqueza que, muitas vezes, permanece oculta pela restrição de uso ou por nunca ter sido usada para uma determinada situação. Nesse sentido, vale a pena se esforçar para construir novas concepções em torno da língua indígena, valorizando-a a partir da ampliação de uso e criação de necessidades de uso via escola. Com isso, podemos afirmar, portanto, que é possível trabalhar todo e qualquer gênero textual escrito em língua indígena, facilitando o aprendizado também em língua portuguesa, quando esta for a segunda língua.
Para finalizar, com relação à produção escrita, tanto em língua materna quanto na segunda língua, alguns passos são importantes para explorar cada vez mais a escrita, (lembrando que isso deve ser feito em parceria com o aluno, até que ele consiga aprender): planejamento do texto, produção, revisão e reescrita. Para isso, é necessário que o professor de língua indígena e que o professor de português como segunda língua13 tenham condições de ensinar seus alunos a delimitar o tema de seu texto e aquilo que lhe dará unidade; eleger objetivos; escolher o gênero; delimitar os critérios de ordenação das ideias; prever as condições dos leitores e a forma linguística (se é mais formal ou menos formal) que o texto deve assumir; registrar o que foi planejado; analisar o que foi escrito para confirmar se os objetivos foram cumpridos; se conseguiu a concentração temática desejada; se há coerência e clareza no desenvolvimento das ideias; se há encadeamento entre os vários segmentos do texto; se há fidelidade às normas da sintaxe e da semântica; se respeitou, enfim, aspectos da superfície do texto como, por exemplo, a ortografia, a pontuação e a divisão do texto em parágrafos, etc. (Antunes, 2003).
6. ORALIDADE E ESCRITA NO ENSINO BILÍNGUE ADITIVO: COMO TRABALHAR?
Este tópico não foi escrito com a finalidade de apresentar um modelo padrão para o trabalho com a oralidade e a escrita em contexto de bilinguismo. Nem de longe, se pretende estabelecer como uma regra a ser seguida, até porque respeitamos os processos próprios de aprendizagem das comunidades indígenas, bem como acreditamos na criação e aperfeiçoamento de modelos próprios de ensino. Mas, para não nos colocar indiferentes quanto à ideia de como trabalhar competências comunicativas, apresentamos aqui a proposta elaborada por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) para ensinar a escrever textos e a exprimir-se oralmente em situações públicas escolares e não escolares14.
No modelo estabelecido por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), está previsto que o ato de ensinar a escrever textos e a se expressar oralmente se fará por meio de um procedimento que eles designaram como “sequência didática”. Segundo os autores, sequência didática “é um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito” (Dolz, Noverraz & Schneuwly, 2004, p. 82).
As principais características de uma sequência didática são: (a) trabalhar com gêneros; (b) possuir uma estrutura de base que prevê, no mínimo, quatro etapas (apresentação da situação, produção inicial, módulos e produção final); e (c) avaliar o processo e o produto.
A fim de que possamos esclarecer o funcionamento desse procedimento conhecido como “sequência didática”, faremos uma breve exposição dos passos previstos nesse método de ensino15.
6.1 Trabalhar com gêneros textuais orais e escritos nas escolas indígenas
Entendem-se gêneros os textos escritos ou orais que produzimos em nossas práticas discursivas e que se diferenciam uns dos outros por conta das condições diferentes em que são produzidos. Cabe lembrar que a escola indígena poderia se interessar mais por determinados gêneros do que por outros, compreendendo que a sua função é de valorizar as práticas discursivas em que os alunos estão envolvidos no seu dia a dia, mas também trabalhar gêneros que o aluno não domina ou o faz de maneira insuficiente. Nesse sentido, as sequências didáticas servem, portanto, para dar acesso aos alunos a práticas de linguagem novas ou dificilmente domináveis, já que uma sequência didática tem a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada situação de comunicação, levando em conta a possibilidade de uso da primeira e da segunda língua do aluno.
Para a escolha dos gêneros, os professores podem realizar uma micropesquisa a fim de verificar inicialmente o uso real que se faz da língua indígena e da língua portuguesa dentro e fora da área indígena: situações em que se utiliza a língua portuguesa como sistema de comunicação oral na área indígena; situações em que se utiliza a língua indígena como sistema de comunicação oral na área indígena; situações em que se utiliza a língua portuguesa como sistema de comunicação oral na escola indígena; situações em que se utiliza a língua indígena como sistema de comunicação oral na escola indígena; situações em que se utiliza a língua portuguesa como sistema de comunicação escrita na área indígena; situações em que se utiliza a língua indígena como sistema de comunicação escrita na área indígena; situações em que se utiliza a língua portuguesa como sistema de comunicação escrita na escola indígena; situações em que se utiliza a língua indígena como sistema de comunicação escrita na escola indígena; situações em que os estudantes de 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental e os do Ensino Médio utilizam a língua portuguesa como sistema de comunicação oral fora da área indígena.
Dessa forma, o professor pode partir do que os alunos já sabem, já praticam e do que já faz parte da realidade deles, para aprimorar as habilidades já desenvolvidas e inserir, progressivamente, novos gêneros com o objetivo de capacitar esses alunos para o uso da modalidade oral e da escrita, tanto na língua materna como na segunda língua.
Por fim, para a escolha dos novos gêneros, o professor deverá levar em conta os domínios sociais de comunicação (cultura literária ficcional, documentação e memorização de ações humanas, discussão de problemas sociais controversos, transmissão e construção de saberes, instruções e prescrições) e as capacidades de linguagens dominantes nos gêneros selecionados16 (narrar, relatar, argumentar, expor e descrever ações).
6.2 Compreendendo a elaboração de uma “sequência didática”
De acordo com Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), uma sequência didática obedece à seguinte estrutura: Apresentação da Situação > Produção Inicial > Módulo 1 > Módulo 2 > Módulo 3 > … > Produção Final.
Apresentação da Situação é definida pelos autores como o ato de descrever, de maneira detalhada, a tarefa de expressão oral ou escrita que os alunos deverão realizar, bem como o gênero textual escolhido (forma, função, conteúdo e nível de linguagem).
Entende-se como Produção Inicial o momento de elaboração do primeiro texto pelos alunos a partir das informações apresentadas na fase anterior. Nessa etapa, o professor deverá diagnosticar as capacidades já adquiridas pelos alunos e ajustar as atividades e os exercícios previstos na sequência às possibilidades e dificuldades reais de uma turma. Assim, é possível definir o ponto preciso em que o professor pode intervir melhor, e o caminho que o aluno tem ainda a percorrer. Por meio da Produção Inicial, portanto, o professor consegue traçar um plano de trabalho que objetiva desenvolver as capacidades de linguagem dos alunos que, apropriando-se dos instrumentos de linguagem próprios ao gênero, estarão mais preparados para realizar a produção final. Nesse sentido, consideramos que a produção inicial seja o primeiro lugar de aprendizagem da sequência.
O que Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) denominam de Módulos é um conjunto de várias atividades ou exercícios que levam o aluno a trabalhar os problemas que apareceram na primeira produção e de dar aos alunos os instrumentos necessários para superá-los. Essa fase pode ser desdobrada em quantos módulos forem necessários, a fim de que as dificuldades dos alunos em produções orais e escritas possam ser sanadas, por meio de trabalhos sistemáticos e aprofundados em ambas as línguas. Na verdade, trata-se de uma atividade de decomposição do texto para trabalhar, um a um e separadamente, seus diversos elementos.
Para auxiliar o professor, questões a serem levadas em consideração para a constituição dos Módulos podem ser as seguintes: (a) que dificuldades da expressão oral ou escrita abordar em língua indígena ou em língua portuguesa? (b) como construir um módulo para trabalhar um problema particular na produção de um gênero textual em língua indígena ou em língua portuguesa? (c) como capitalizar o que é adquirido nos módulos construídos para sanar dificuldades e aperfeiçoar uma competência comunicativa em língua indígena ou em língua portuguesa?
Em termos de Produção Final, considera-se a fase em que o aluno põe em prática os conhecimentos adquiridos e, com o professor, mede os progressos alcançados. A produção final serve, também, para uma avaliação de tipo somativo, que incidirá sobre os aspectos trabalhados durante a sequência (Dolz, Noverraz & Schneuwly, 2004).
Pensando na avaliação, ao se adotar o procedimento “sequência didática”, deve-se compreender esse momento como uma questão de comunicação e de trocas. Assim, a avaliação servirá para orientar os professores a uma atitude responsável, humanista e profissional, conforme destaca Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004).
O professor deve considerar ainda que seus alunos possuem níveis distintos de bilinguismo e que, mesmo realizando as mesmas atividades para o aperfeiçoamento do uso oral e/ou escrito em uma dada língua, os alunos possivelmente continuarão em níveis diferentes de domínio e uso da primeira e da segunda língua.
Para facilitar a avaliação, em cada sequência finalizada, o professor poder realizar o registro dos conhecimentos adquiridos sobre o gênero durante o trabalho nos módulos, na forma sintética de lista de constatações ou de lembrete ou glossário. Essa lista de constatações pode servir para a elaboração dos critérios de avaliação da produção final do aluno (Dolz, Noverraz & Schneuwly, 2004).
7. A ORALIDADE E A ESCRITA EM CURSOS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS: QUANDO SE TRABALHA AS LÍNGUAS, O QUE SE TRABALHA E COMO É FEITO O TRABALHO?
Pelo que se construiu neste texto, é possível verificar que o desenvolvimento de capacidades de produção de textos orais e escritos em contexto de bilinguismo é extremamente complexo. Isso implica um maior cuidado no tratamento desse tema nos cursos de formação de professores indígenas, ou seja, não há como cobrar qualidade no ensino de línguas em escolas indígenas para o desenvolvimento de atividades que viabilizam o aprimoramento de produções orais e escritas em primeira e em segunda língua do aluno indígena, sem que o professor indígena tenha também conseguido aperfeiçoar, a contento, as suas habilidades bilíngues no período de formação. Nesse sentido, entendemos que os cursos de formação de professores indígenas devem contemplar em seus currículos e em suas práticas de ensino um trabalho mais denso e intenso com a oralidade e a escrita em língua indígena e em língua portuguesa.
Com base na reflexão acima, não dá mais para fechar os olhos para o desenvolvimento de cursos de formação de professores indígenas que formam professores indígenas bilíngues para atuarem em escolas indígenas bilíngues, mas não estão conseguindo ampliar o espaço de uso e reflexão linguística das línguas indígenas de seus respectivos acadêmicos, bem como um trabalho de prática e reflexão linguística acerca da língua portuguesa, considerando as condições em que ela foi aprendida pelos professores indígenas em formação.
Sabemos que essa questão precisa ainda ser amplamente discutida nos cursos diferenciados e específicos de formação de professores indígenas, a fim de identificar os motivos que têm impedido os cursos de imprimir uma maior qualidade no tratamento das práticas orais e escritas na primeira e na segunda língua dos acadêmicos dos respectivos cursos, bem como pensar em propostas de intervenção para ajudar a melhorar a formação oferecida. Trata-se, na verdade, de políticas linguísticas que podem refletir positivamente nas escolas indígenas nas quais os professores indígenas em formação atuam ou atuarão.
Essa reflexão também é realizada a partir de nossa atuação profissional no curso de formação de professores indígenas Guarani e Kaiowá, a Licenciatura Intercultural Indígena - Teko Arandu. Esse é um curso de formação em nível superior, oferecido pela Universidade Federal da Grande Dourados, UFGD. Teve sua implementação no ano de 2006 e, até o momento, três turmas já concluíram o curso, formando aproximadamente 130 professores indígenas. Atualmente o curso conta também com três turmas em andamento, em um total de 200 professores em formação.
A formação é dividida em dois momentos. Primeiramente, os alunos passam por uma formação comum, que corresponde a três semestres. Após essa primeira fase de formação, os alunos devem escolher em que área desejam ser habilitados: Ciências Humanas ou Ciências da Natureza ou Linguagens ou Matemática (o bloco específico tem duração mínima de mais seis semestres). Como o propósito do curso é oferecer uma formação multidisciplinar, habilitando professores para atuar nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, cada área busca agregar, em seu currículo, conhecimentos que deem conta dessa polivalência. Assim, a área de Ciências Humanas concentra conhecimentos de Geografia, História, Filosofia, Sociologia e Antropologia; a de Ciências da Natureza reúne conhecimentos de Física, Química e Biologia; a de Linguagens contempla Línguas (L1 e L2), Literatura, Artes e Educação Física; já a Matemática, habilita apenas para Matemática.
Para fazer uma aproximação com a reflexão que viemos desenvolvendo ao longo do texto, a partir desse momento, focamos nossa análise na área de Linguagem do curso. Ela habilita professores para trabalhar nos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio com a língua indígena como L1 e a língua portuguesa como L2. Além disso, os componentes curriculares contemplam o desenvolvimento de conhecimentos sobre Artes e Educação Física. Nesse sentido, essa área de formação desenvolve atividades orientadas na direção de uma formação intercultural, bilíngue e multidisciplinar dos discentes (UFGD, 2012).
Aqui, nos detemos a analisar quais as contribuições que essa matriz curricular apresenta para a formação de um professor capaz de trabalhar com as diferentes línguas nas escolas de sua comunidade. Mas também qual a formação linguística obtida para instrumentalizar os indígenas para que possam desenvolver a oralidade e a escrita com vistas à melhoria do ensino de L1 e de L2 nas escolas indígenas guarani e kaiowá.
Os Componentes Curriculares na área de linguagem que promovem uma formação para o ensino de línguas são: Linguística e Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas na Escola Indígena; Variação, Mudança e Diversidade Linguística; Oralidade e Escrita no Ensino de Línguas; Laboratório de Análise Linguística I; Laboratório de Análise Linguística II; Língua, Cultura e Sociedade; Metodologias de Ensino de Línguas; Estudos Linguísticos Contrastivos I; Estudos Linguísticos Contrastivos II; Introdução aos Multimeios; Prática de Produção de Textos Científicos; Trabalho de Conclusão de Curso em Linguagens I; Elaboração de Materiais e Recursos Didáticos para o Ensino de L1; Elaboração de Materiais e Recursos Didáticos para o Ensino de L2; Trabalho de Conclusão de Curso em Linguagens II; Atividades acompanhadas em Linguagens I; Atividades acompanhadas em Linguagens II; Atividades acompanhadas em Linguagens III; Atividades acompanhadas em Linguagens IV; Atividades acompanhadas em Linguagens V; Atividades acompanhadas em Linguagens VI (UFGD, 2012).
De todo modo, dos trinta e três componentes curriculares que compõe a área de Linguagens, vinte e um componentes curriculares apresentam no seu ementário uma discussão sobre a formação do docente indígena para o desenvolvimento do ensino de línguas nas escolas indígenas. Assim, mesmo que esses componentes possam trazer uma discussão inter- trans- multi- disciplinar (principalmente no caso dos seis componentes curriculares de atividades acompanhadas em linguagens), eles representam 63,63%, ou praticamente dois terços, da formação nessa área, sendo que os demais componentes, desenvolvem uma formação para as áreas de literatura, artes e educação física na educação escolar indígena. Nesse sentido, é preciso considerar que o peso da habilitação em Linguagens para a formação sobre o ensino de línguas, e assim proporcionar o desenvolvimento da oralidade e escrita nas escolas indígenas nos parece bastante adequado, embora sempre seja preciso reconhecer os limites de uma formação específica em apenas três anos de curso.
Cabe observar, em especial, os componentes curriculares que fazem menção às “Atividades Acompanhadas”. Trata-se de componentes que são a base do trabalho de alternância no qual o Curso se sustenta (Martins & Knapp, 2014). A alternância, resumidamente, baseia-se na relação de complementaridade entre os Tempos Universidade e os Tempos Comunidade do curso, isso é, existem momentos onde o estudante indígena se encontra na Universidade em etapas de aula concentradas e presenciais, e momentos em que os professores do curso se deslocam para as comunidades indígenas dos Guarani e Kaiowá para realização de atendimentos pedagógicos. Durante esses períodos, os professores indígenas em formação desenvolvem projetos cujo objetivo é a realização de intervenções pedagógicas e sociais. Trata-se de projetos de ensino, pesquisa ou extensão, que visam a intervenção do que é desenvolvido no Tempo Comunidade a partir das reflexões do Tempo Universidade, embora não tenha uma relação teoria e prática, pois a formação ocorre de forma simétrica (Martins & Knapp, 2014).
Cabe ressaltar ainda que, a partir dos outros componentes curriculares desenvolvidos no semestre, é possível definir quais temas podem nortear as intervenções dos projetos de alternância a serem desenvolvidos nas atividades acompanhadas. Dessa forma, a função desse componente curricular é garantir a inter-relação do que já foi desenvolvido nos outros componentes ofertados no semestre17.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos, neste texto, descrever parte da realidade da Educação Escolar Indígena no que diz respeito aos modelos bilíngues de educação e ensino presentes em escolas indígenas, sobretudo nas escolas indígenas guarani e kaiowá do cone sul de Mato Grosso do Sul. Em seguida, buscamos tornar claras as definições de bilinguismo subtrativo e bilinguismo aditivo para darmos conta de pensar nas possibilidades de um modelo de ensino que trabalhe, de fato, a primeira e a segunda língua dos alunos indígenas. Procuramos ainda traçar um percurso de trabalho com a oralidade e a escrita, buscando a possibilidade do seu desenvolvimento numa escola indígena preocupada em desenvolver competências e habilidades linguísticas na língua materna do aluno e ensiná-lo a realizar transferências de habilidades para o uso oral e escrito da língua portuguesa. Nesse sentido, demos ênfase a um procedimento metodológico de ensino que se apresenta como um facilitador para ajudar a desenvolver contínua e progressivamente as competências comunicativas em torno das modalidades oral e escrita em L1 e L2, mas não descartamos a existência e a possibilidade de criação de métodos próprios de ensino-aprendizagem a fim de alcançar os mesmos objetivos.
Com relação aos cursos de formação de professores indígenas, chamamos a atenção para que se valorizem discussões mais intensas dentro dos próprios cursos a respeito do como garantir que os professores em formação também consigam desenvolver habilidades bilíngues e aproveitar essa experiência; transpondo, adequando e (re)criando o ensino de línguas nas escolas indígenas em que atuam ou vão atuar.
Neste texto, procuramos deixar clara a possibilidade real da existência de uma escola indígena que se modele numa perspectiva de ensino bilíngue aditivo, mas vemos que isso só pode ser concretizado quando, nos próprios cursos de formação de professores, for diminuída a assimetria no tratamento que é dado à língua majoritária e às línguas minoritárias, lembrando que a existência dessas, por sua vez, é que fizeram dar mais sentido na proposta de construção de uma escola indígena diferenciada, específica, intercultural, autônoma e bilíngue que, consequentemente, motivou a construção de cursos específicos de formação de professores indígenas.